quarta-feira, 21 de agosto de 2013

DEMOcracia opressiva

Ora, ora, ora... "o Brasil é um país Livre e Democrático" repetiu meu pai durante toda a minha infância. Em tom de gozação, esse mantra me era dado como resposta à um pedido como "Posso dormir na casa da Priscilla?" "Keith, o Brasil é um país livre e democrático!". É sim, a exemplo dos EUA.

Livre para que? De que? São perguntas que depois de um tempo comecei a me fazer. Já nascemos endividados, afinal tem-se que pagar impostos para ter casa, pagar impostos nos alimentos, no tratamento de água, na compra de roupas e outras coisinhas fundamentais para sobrevivência. Já nascemos endividados, como escravos nas senzalas, só que livres... Livres como pássaros, embora precisemos de documentos diversos, dinheiro e pemissão para voar.

Aparentemente a única mudança entre estados totalitários de monarquias e nossa atual república democrática é a maquiagem. Houve um tempo em que Czares censuravam livros e algumas ideias eram declaradas como proibidas. Hoje num estado livre e democrático é a maior alegria, pode-se questionar tudo e pensar a respeito de tudo. Contudo, questionar apenas nos acarreta dores de estômago insuportáveis, ao notarmos tantas medidas desumanas. Pode questionar e reclamar, e gritar e cantar. Não irão te torturar ou censurar, apenas te ignorar e abafar. Abafar em meio a montes de informações inúteis e desconexas. Quanta liberdade! Mas, se seu grito incomoda aí então algumas medidas podem ser tomadas, não por censura, é claro, simplesmente para garantir a paz e defender a democracia.

Os EUA é símbolo máximo dessa democracia esquizofrênica. Alienante e imbecil. Democracia: governo em que o povo exerce soberania. E sou obrigada a ler estarrecida toda essa história do Bradley Manning... Por Deus do céu que soberania é essa em que o povo é proibido de saber o que se passa e como seu governo age em seu nome? Que povo aprovaria as ações desumanas dos EUA no Iraque? Como uma pessoa com um mínimo de consciência aguentaria viver aquilo diariamente? E quando ele só divulga a informação é detido e torturado?! Todas as notícias passam a ser sobre a pena dele, do delator. Mas e o governo dos EUA como está seu julgamento por quebrar leis internacionais de direitos humanos?

Esse governo, colorido, livre e democrático que espiona todos os outros países condena duramente que sua própria população saiba como se age em seu nome. Por risco de que outros países tenham acesso a informações sigilosas... Esse governo que em nome da liberdade e da democracia se mete em conflitos sangrentos em países distantes, e condena militares egípcios por prenderem líderes da Irmandade Muçulmana, fazendo uma salada mista em nossas cabeças.

E o Brasil, livre e democrático entra na dança, no samba do crioulo doido. Se fazendo de tonto, tentando tirar o corpo fora, com ações esquizofrênicas, recusa visto à Snowden, mas manda cartinha de repúdio à espionagem? É porque receber Snowden não é bom para os negócios, temos infinidade de investimentos norte-americanos e britânicos no país, e em contra partida mandamos mundo de dinheiro para pagar a dívida externa e matéria-prima subvalorizada... E por isso mesmo, por essa dependência questionável e praticamente desnecessária, utilizamos discursinho de songo-mongo quando Miranda ficou 9 horas detido no aeroporto britânico, do mesmo país em que Jean Charles foi assassinado.

Até quando suportaremos que governos atuem de maneira desumana e injusta em nome do capital, de investimentos, de balança comercial? Até quando obrigaremos jovens a se alistarem no exército para atuarem contra sua própria consciência, em nome de uma guerra sem sentido? Até quando puniremos os que são incapazes de viver a injustiça e resistem, e obedecem suas próprias consciências acima de leis e ordens claramente perversas e injustas? Até quando engoliremos o autoritarismo e a opressão disfarçados de liberdade democrática?

Não é possível viver num mundo assim e manter uma saúde mental e emocional razoável. Fazem com que a palavra liberdade perca todo o seu nobre sentido e se transforme numa mentira perversa. O mesmo com a democracia. As palavras são bonitas, usemos. Afinal, se ensinarmos a uma criança que cadeira se chama mesa ela passará sua vida toda sentando sobre a "mesa", e quando alguém disser que precisa trocar de mesa, mesmo estando a cadeira em ótimo estado, o desentendimento será fatal. Porque ela não sabe que "ela chama cadeira de mesa", ela sabe que aquile acento individual é uma mesa.

Não sabemos o que é liberdade, pensamos que o que chamamos de liberdade é liberdade...

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A ecologia no Amor

Definitivamente não existe propriedade intelectual. Não temos ideias próprias formuladas por nossas mentes geniais, individuais. Isso não existe. Somos detetives, devemos ser observadores atentos para que possamos pescar a ideia que devemos expor. Pois elas simplesmente se constroem, nos chegam peças de quebra-cabeças, aparentemente desconectadas do todo, olhamos, analisamos, e colocamos no bolso. Lá pelas tantas, BAZINGA, essa peça encaixa-se num contexto mais amplo.

Depois de alguns anos, sete quase oito, conquistei com o Thiago um relacionamento que supera o ideal. Pensava eu em elaborar um texto sobre isso para entregar a ele no nosso aniversário de namoro. Mas, não me controlei, e já falei tudo. Quando começamos a namorar eu tinha 19 anos, ainda era muito imatura, meus sentimentos eram um turbilhão e eu não sabia lidar com eles ou sequer com meus pensamentos. Pois é, minha adolescência foi longa. Mas, eu idealizava me tornar uma pessoa mais centrada, e com isso conquistar um relacionamento mais harmonioso, sem conflitos.

Os anos foram passando, tempestade após tempestade (todas causadas por mim mesma) foram sendo enfrentadas. E cheguei a um insight dentro de um ônibus. Isso, esse relacionamento que estamos vivendo agora, é o meu ideal de relacionamento sonhado há alguns anos atrás. Não tenho aquele mal estar de antes, de pensar que é apenas uma fase e ficar tensa a espera da próxima crise, de olho nos sinais. Tenho a sensação de que é um estado conquistado, mas não eterno. Isso é, nosso relacionamento ainda vai melhorar e evoluir, só que o próximo estágio está além do que eu podia sequer imaginar meia década atrás.

A conquista desta estabilidade exigiu esforços conjuntos, ainda que individuais. Cada um teve que enfrentar seus próprios monstros. Superar seus paradigmas irreais, libertar-se do véu da ilusão, para então conseguir desfrutar plenamente da "sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida".

Sim, era nesse ponto que queria chegar. A mudança de paradigma e o bye-bye ilusão. Nosso relacionamento transcendeu a economia (competição, expansão, dominação) e alcançou padrões ecológicos (cooperação, conservação, parceria). Como eu disse, essa ideia não é minha, ela posou na minha cabeça, isso por causa desse trecho que eu li numa citação, num blog ambiental (da Carol Daemon):

"Numa parceria verdadeira, confiante, ambos os parceiros aprendem e mudam - eles COEVOLUEM"

Bem, na realidade trata-se de uma analise de sistemas ecológicos e como nossa sociedade deveria usar esse paradigma para superar a crise ambiental. Mas, já venho quebrando algumas repartições, e o que aprendo em leituras espirituais vejo em falhas governamentais, e o que aprendo academicamente sobre sustentabilidade aplico no relacionamento amoroso. Afinal, a busca pela sustentabilidade permeia toda nossa experiência enquanto ser humano. Se a aplicação de conceitos ecológicos podem salvar nossa espécie do colapso e encaminhá-la para a sustentabilidade, imagina o que não é capaz de fazer com nossas relações pessoais? Cooperação, feedback, adaptação são termos que devem sair dos livros e discursos para serem aplicados, pois nós somos a natureza que estudamos e lemos, estamos sujeitos às mesmas leis da natureza que uma árvore e seu sistema. Estamos em constante troca por meio das mais diversas relações. O que somos "nós" é função de nossas relações (o crédito dessa reflexão vai ao filme O Ponto de Mutação).

No pôr do Sol desse domingo, sentada em um banquinho no jardim, ouvindo o "tchá-tchá-tchá" da tesoura que ele corajosamente manejava nas minhas madeixas, sentindo a presença tranquila dos cachorros espatachados no chão, tive certeza de que o Amor e a Felicidade residem da harmonia, isso é na ausência de conflitos. E que esse estado é dinâmico, por isso não devemos nos apegar à estabilidade.

Esse equilíbrio dinâmico é semelhante ao de uma floresta tropical, em que as primeiras colonizadoras foram transformando o solo pobre em humos, possibilitando o crescimento de plantas mais exigentes, dando suporte ao trabalho de animais, tornando as relações mais complexas e transformando um ambiente inóspito em um paraíso cheio de vida. Essa floresta não está a salvo de distúrbios, e depende de sua resiliência, retornar ao seu estado de harmonia após esses distúrbios ou utilizá-los para seu aprimoramento.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Como Nossos Pais

A arte, a cultura, a música, a criatividade! Eis as mais importantes criações humanas. Fazer críticas profundas, radicais, ferozes, transformadoras e libertadoras na forma de desenho, poemas, música é um delicioso dom divino. E as críticas ficam lá, escondidinhas, ansiosas por serem descobertas unicamente por almas corajosas e inquietas, capazes de ver além. Cada alma retém o que é capaz e o que necessita no momento, muitas totalmente fechadas para qualquer mudança simplesmente repassam a mensagem, cantarolando vez por outra, sem significado.

Como Nossos Pais! 

Que alegria profunda (re)descobrir essa música e desvendar um novo significado, um significado meu, que veio me resgatar de uma tempestade sinistra. Já faz um tempo.

A música sempre vinha e ia. Ouvia e gostava, sem mais. No ano passado iniciei no coral da FURG. A dica foi: "cantem, busquem uma música que gostem e tentem deixar sua voz se tornar uma com a da cantora". Que delícia cantar com Elis, a voz flui sem impedimento algum, é porque ela canta de dentro, ela sente lá no coração as palavras que são ditas, ela acredita na mensagem, e tem técnica musical. E assim, Como Nossos Pais se tornou meu repertório favorito para a hora do banho, para a infelicidade dos vizinhos, certamente!

Nessa cantoria desenfreada comecei a prestar atenção na letra, depois de ter ouvido e repetido tantas vezes. PIMBA! Nossa, é isso mesmo! Essa música me deu a dica mais importante que recebi nos últimos tempos. A dica mais importante que todo e qualquer acadêmico deveria receber. Mais importante do que "como fazer seu artigo ser aceito em uma revista conceituada".

O mais incrível é que a crítica original é traçada aos intérpretes, como Elis. Mas, com algumas adaptações a carapuça serve a todos.

Não quero lhe falar, meu grande amor, das coisas que aprendi nos discos. Quero lhe contar como eu vivi e tudo o que aconteceu comigo.

Muita bagagem teórica vamos acumulando através das leituras de livros, artigos, trabalhos acadêmicos. Mas, quem é você? O que você fez com esse conhecimento acumulado? De que adiantou? Como você viveu? Porque ninguém parece se importar com essas questões, e você se sente como um número na multidão, como se não importasse a sua vida, apenas seus artigos publicados.

Viver é melhor que sonhar. Eu sei que o amor é uma coisa boa. Mas, também sei que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa.

É importante a realização de pesquisa, das mais diversas. Mas, é importante ver o contexto e o objetivo de sua pesquisa. Esse artigo pode parecer a coisa mais importante do mundo, mas ele é menor do que a vida de qualquer pessoa. Isso, a vida de qualquer pessoa, é o que realmente importa. Pode sonhar que sua pesquisa sobre o aquecimento global vai salvar a humanidade, mas viver a melhora da humanidade é melhor que sonhar.

Por isso cuidado meu bem, há perigo na esquina. Eles venceram e o sinal está fechado para nós, que somos jovens.

Pode parecer estúpido se preocupar mais com o bem estar de outros seres humanos do que com nosso progresso acadêmico. Essa é uma armadilha perigosa. Foi assim que a maioria dos pesquisadores admirados se tornaram renomados, ignorando a compaixão. E o sinal está fechado, para pesquisadores que buscam mudar esse paradigma e aproximar a pesquisa ao serviço de servir o bem estar da humanidade. Quem fomenta a pesquisa são empresas privadas ou o Estado. Ambos tem interesses.

Para abraçar seu irmão e beijar sua menina, na rua, é que se fez o seu canto, os seus lábios e a sua voz.

Na rua! Um local público, onde todos tem igual acesso. Viemos desenvolvendo ao longo de nossa graduação uma incrível capacidade de ler, interpretar, entender e elaborar os mais bem escritos textos. Podemos usar essa capacidade para entender a mãe, o pai. Escrever uma carta, longa, coerente, profunda e sincera no aniversário do amigo. É para isso que serve todo nosso intelecto, fomentar o amor e a harmonia. Seja através da pesquisa, seja através das relações sociais.

E a música continua. Profunda, forte, disponível para as maiores lições. Livre para que cada um veja o que for capaz, o que mais precisar no momento, o que tiver força de suportar. Minha libertação foi parar de me martirizar sobre a possível qualidade da minha pesquisa acadêmica e reconhecer que eu sou mais do que isso. Sou mais do que o número de artigos publicados no meu Lattes, e que eu nem quero que esse número seja grande, mas que ele seja consoante com o que eu acredito, com quem eu sou e com o melhor de mim, não tecnicamente, mas no sentido de auxiliar na promoção de uma evolução!

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A diversidade de 3 itens.

Estamos sempre atentos, e assim fica fácil e até gostoso conectar as informações naturalmente interconectadas. Quer dizer, gostoso por esse trabalho de detetive amador, mas a realidade que vamos encontrando é bastante desanimadora, acho que é por isso que o termo "radical" ganhou uma conotação negativa. Sendo que um dos significados no meu dicionário é ir à raiz do problema. Pois é, parece que o senso comum alienador não é muito chegado em profundidades. E cada vez fico mais espantada como as palavras mais belas são as mais distorcidas.

Nesse fim de semana fui à um sítio, o Sítio Amoreza, fazer uma oficina de culinária natural. Com o intuito claro de despertar nossa consciência para o impacto socioambiental da nossa alimentação cotidiana. Além do fato de prejudicar nossa própria saúde, pois os alimentos industrializados são ricos em gordura, sódio, conservantes, aromatizantes, e diversos produtos químicos, paupérrimos em nutrientes e fibras, levando nosso querido organismo a desenvolver as mais loucas e tristes doenças, o que é muito positivo para indústria farmacêutica! Mas, não tão positivo para quem depende do SUS para ter acesso à essa indústria.

Falsa Cornucópia, diversidade de 5 ingredientes.
A mais chocante descoberta do fim de semana foi graças ao documentário Comida S.A., basicamente, toda cornucópia de alimentos atrativamente expostos nas vitrines dos supermercados nada mais são do que combinações diversas de milho, trigo e soja. Sim, nossa diversidade de alimentos se restringe a 3 tipos de plantação. As mesmas que alimentam as "fábricas" de proteína animal. Esses cereais são utilizados inclusive nas mais inusitadas receitas, como fabricação de tinta, cola e protetor solar. Num primeiro instante talvez seja difícil reconhecer o tamanho do "buraco" em que estamos nos metendo. Mas, vamos falar mais sobre isso.

Inicialmente, essa tendência de enxugar a diversidade está relacionada à números, relativos a lucro, fácil de entender em gráficos. Ninguém na Hellman´s se preocupa se a população está mais saudável, mais feliz, mais nutrida, ou (sinto muito dizer isso, pois imagino que algumas pessoas pensem que sim, mas eles não se preocupam se existem mais pessoas) morrendo de fome. Eles são uma empresa, e como toda boa empresa se preocupa em gerar lucros e cortar gastos. O cultivo intensivo é (ilusoriamente) mais barato, usa-se grandes áreas e para não promover um bloom de organismos que naturalmente alimentam-se de milho, ou para evitar o alastramento de doenças, o que é comum em grande concentrações de qualquer espécie, usa-se quantidades brutais de agrotóxico. É tanto agrotóxico que nem o próprio pé de milho suportaria. Pois então, desenvolve-se o "melhoramento genético", sob o discurso de que é justamente para desenvolver milhos que não precisem de agrotóxico ou fertilizantes, que brotem no deserto do Saara, que extingam a fome do mundo, só que não é bem esse o objetivo real.

Soja em terras indígenas do MT. Fonte: Axa
E então as imensas lavouras de milho, soja e trigo vão crescendo por tudo, dominando vastas áreas de terra fértil, extinguindo espécies nativas e variedades de alimentos saudáveis e expulsando o pequeno agricultor. Aliás, a vida desse agricultor primeiramente foi estratégica e maquiavelicamente ficando terrivelmente difícil, com boicote deliberado em sua infraestrutura e propagandas maciças e enganosas da maravilhosa vida na cidade, onde de fato há algum investimento em infraestrutura, e como o homem do campo é burro e não serve para nada, que o que importa é a educação e uma criança sem educação está fadada a ser tão repugnante e infeliz quanto o próprio pai. Assim, fica fácil imaginar como as favelas e periferias dos centros urbanos se formaram e como surgiram grandes proprietários de terra. Ou como os camponeses resistentes foram se (des)informando e passaram a cultivar milho e soja, uma vez que os incentivos fiscais eram brutos. (incentivo fiscal nunca visa sustentabilidade social e ambiental, o mesmo ocorreu com a pesca)

Injustiça social é travestida de crescimento
econômico. Fonte: Pratos Limpos.
A produção de milho, soja e trigo tem o bônus de ser praticamente totalmente mecanizada, o que é ótimo, pois o trabalho no campo é duro. Acontece que essa mecanização não é para que o homem tenha mais tempo livre, para a cultura e lazer, é novamente para cortar custos e aumentar o lucro. Toda essa modernização, esse progresso, esse desenvolvimento faz do Brasil um grandíssimo exportador desses grãos, deixando nossa balança comercial muito "bem na fita". Afina, de números e gráficos nossos economistas entendem. E se tem um indicador que põe um sorriso na cara (de pau) dos dirigentes é o tão querido "crescimento econômico".

É tão absurda e surreal essa situação que sinto vontade de deixar esse texto no meio e sair correndo e gritando. Mas, deixa eu continuar. Então, bem, temos o lucro dessas megacorporações, que acredito que no fundo sejam a mesma, isso é, já tenham se comprado entre si, mas mesmo que não, temos a indústria de sementes lucrando, a de fertilizantes, agrotóxicos, tratores, roçadeiras, colheitadeiras, caminhões. São empresas estrangeiras.  E o dono da terra provavelmente nunca pisou com sua bota num pedaço de terra. Esses grãos são colhidos, colocados em caminhões (e aqui temos que agradecer muito, muito mesmo, pois olha que lindo, eles deram emprego aos nossos caminhoneiros, e esta aí mais um dirigente sorrindo, empregos!!!) e levados ao porto para serem escoados oceano a fora.

Mas, precisamos de mais, precisamos ser mais competitivos no mercado da soja (isso é, precisamos dar mais lucro para os corruptores corromperem os dirigentes em busca de mais lucro) e a bola da vez é o "custo Brasil". As estradas não estão muito boas, a gasolina está cara, o caminhoneiro tem muito direito, e olhem o preço do pedágio, aliás, a empresa do pedágio também é estrangeira, no caso da Ecosul italiana! Afinal, é preciso uma tecnologia e um know-how muito sofisticado para administrar pessoas sentadas em cabines recolhendo dinheiro de automóveis e caminhões, tivemos que "importar" uma empresa com tamanho conhecimento, e certamente nenhum governador ganha dinheiro com isso, ele de fato se preocupa com a condição de nossas estradas. E por fim, temos que diminuir as tarifas portuárias, e claro, a corrupção também está acabando com o lucro de muitos empresários.

Prefiro acreditar que nossos industrializados são feitos totalmente aqui, isso é que não exportemos milho para importar xarope de milho. De todo modo, esse milho, ou soja, cheio de agrotóxico é processado industrialmente com muito produto químico e o que não vira tinta vira lasanha congelada e afins. Se transveste numa embalagem bonitinha, é anunciado com muitos sorrisos e pessoas bonitas e saudáveis, por empresas ecológicas nos anos 90 e sustentáveis agora, que tem preocupações socioambientais, e que promovem a felicidade e a qualidade de vida!

Para ficar claro como existem vários modos de ver a mesma coisa, um corresponde aos que vivem na matrix e são incapazes de perceber a perversidade do sistema, copio o trecho do trabalho de Clarissa Barreto disponível na internet:

"A revolução socioeconômica e tecnológica desencadeada pela soja é enaltecida por  aqueles que participam de sua cadeia produtiva. Para eles, a soja é vista como desbravadora de fronteiras, levando progresso e desenvolvimento, a “uma região despovoada e desvalorizada [Centro-Oeste], acelerou a urbanização dessa região, foi responsável pela interiorização da população brasileira (bastante concentrada no Sul, Sudeste e litoral) e impulsionou e interiorizou a agroindústria nacional, patrocinando o deslanche da avicultura e suinocultura brasileiras” (EMBRAPA, op. cit.).
Outra visão revela que o modelo através do qual foram implantadas culturas comerciais no Brasil, inclusive a soja, excluiu produtores familiares, concentrou a posse de terras e aumentou o tamanho das propriedades. Este modelo foi a chamada modernização conservadora que resultou na modernização dos processos produtivos mantendo a estrutura agrária vigente, isto é, os latifúndios e a produção patronal (EHLERS, 1994)."

Não tenha medo de questionar e criticar o sistema e não tenha preconceitos com quem o faz, isso é atualmente muito importante. Estamos chegando a um ponto crítico. Esse modo de pensar TUDO como se fosse um produto e todas as relações como se fosse comércio não é somente insuportável para seres dotados de alguma sensibilidade, os quais são excluídos a décadas e rotulados de subversivos, radicais, vagabundos, sonhadores, entre outros, esse sistema atingiu limites físicos e objetivos. E precisa ser repensado.

Se você não defende os oprimidos você está do lado dos opressores.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A fábula dos Porcos Assados

Certa vez, aconteceu um incêndio num bosque. Os porcos que ali viviam foram assados pelo fogo e suas peles duras pururucaram, tornando-se apetitosamente crocantes. Os homens daquela região, habituados a comer carne crua, degustaram os porcos transformados em torresmos e acharam delicioso o sabor e o aroma da carne assada. A partir dessa revolucionária experiência gastronômica, toda vez que desejavam comer porco assado e torresmo incendiavam todo um bosque inteiro.

Os homens daquela região montaram um aparato técnico, científico e administrativo monumental para o assamento de porcos. Este aparato foi crescendo assustadoramente passando a envolver milhões de pessoas.

Foram desenvolvidas máquinas e equipamentos sofisticados para executar tarefas de diversos tipos; funcionários foram especialmente treinados para acender fogo e incendiar bosques e alocados em núcleos regionais para trabalhar em períodos diurnos e noturnos. Surgiram, ainda, especialistas em ventos, em chuvas, em árvores, em bosques, em pururuca e torresmo e, enfim, especialistas de todos os tipos possíveis e imagináveis. Os cargos foram surgindo sem parar: o de diretor geral de assamento, o de diretor de técnicas ígneas com seu Conselho de Assessores, o de administrador geral de reflorestamento, o de diretor disso e daquilo, além de centenas de cargos de chefia e sub-chefia. Foram criados departamentos para o treinamento profissional em Porcologia, institutos superiores de cultura e técnicas alimentícias e diversos centros responsáveis pelas reformas de caráter igneooperativo. Foi formulado um Plano Nacional para a Formação de Bosques, Planabo, cuja meta plurianual seria implantar bosques de acordo com as técnicas mais modernas de reflorestamento. Foram trazidos do exterior cientistas para o estudo e seleção das melhores variedades de árvores e sementes, para o estudo de fenômenos pluviométricos, para o estudo do fogo e de matrizes de porcos e para desenvolver pesquisas sobre o extraordinário fenômeno da pururucagem. Poderíamos ficar dezenas de anos seguidos descrevendo o faraônico aparato instituído para coordenar, implementar, controlar e manter todo o gigantesco processo.

Apesar da enorme soma de recursos públicos investidos no funcionamento deste gigantesco aparato, no processo de assamento os animais ficavam, ou parcialmente crus, ou demasiadamente tostados, desagradando milhões de paladares cada vez mais refinados.

As queixas eram justificadas: os impostos pagos para custear o aparato eram escorchantes, a poluição causada pelos incêndios e a qualidade da carne assada, devido, supostamente, à ampliação da escala de produção, cada vez piores. Foram aumentando os protestos na imprensa, crescendo as insatisfações na opinião pública, os políticos aproveitando para fazer promessas de campanha e as mobilizações da comunidade tornando consensual a necessidade urgente de reforma no modelo de assamento de porcos.

Congressos, seminários e conferências passaram a ser realizados na busca de uma solução para o problema. Apesar do extraordinário esforço empreendido por milhares de especialistas em assamento de porcos, inclusive com títulos de doutor obtidos no exterior, os resultados alcançados eram desanimadores. Repetiam-se, assim, os congressos, seminários e conferências. Os especialistas continuaram insistindo que as causas do mau funcionamento do sistema eram a indisciplina dos porcos, que não permaneciam onde deveriam ficar no momento do incêndio do bosque; a natureza indomável do fogo e dos ventos; e, ainda, a má seleção das variedades de árvores, muitas delas inadequadas para o assamento, a excessiva umidade da terra e o insatisfatório serviço de meteorologia que não fornecia informações exatas sobre o lugar, a hora e a quantidade da precipitação de chuvas. Os especialistas formaram correntes de pensamento e desenvolveram doutrinas que geraram disputas acirradas nas Universidades. Milhares de obras de cunho científico foram publicadas, lançadas revistas com prestígio internacional, criados cursos de pós-graduação para formar cientistas além de institutos para desenvolver pesquisas sobre porcos e assamento de porcos.

Até que, certo dia, João Bom-Senso, um incendiador categoria C, nível 4, classe INC, percebeu que o problema era de fácil solução. Bastava, primeiramente, matar, limpar e cortar o porco escolhido e, depois, colocar a carne numa armação metálica sobre carvão em brasa, até que, sob o efeito do calor, a carne ficasse assada. A grande vantagem desse método era a possibilidade de cada um temperar a carne de acordo com o seu paladar e assá-la em sua própria casa reunindo os amigos para beber, conversar, solidificar laços de cunho político, religioso, profissional e/ou apenas afetivo.

Tendo sido informado sobre as idéias subversivas deste perigoso funcionário, o diretor geral de assamento mandou chamá-lo ao seu gabinete e, depois de ouvi-lo pacientemente, disse-lhe em tom incisivo:

— Tudo o que o senhor me explicou é teoricamente muito bonito, diria até maravilhoso, mas jamais funcionaria na prática. O que o senhor faria, por exemplo, com os anemotécnicos, caso viéssemos a aplicar a sua bem intencionada idéia? Onde seriam empregados os pesquisadores que produzem todo o conhecimento necessário para aperfeiçoar as técnicas de incêndio e de reflorestamento?

— Não sei, disse João.

— E os especialistas em sementes? Em árvores importadas? E os desenhistas de instalações para porcos e os operadores de máquinas para destrinchar carne assada?

— Não sei.

— E os cientistas que ficaram anos seguidos especializando-se no exterior e cuja formação custou tantos recursos ao país? E os pesquisadores que têm trabalhado na elaboração do Programa de Reforma e Melhoramento do Sistema de Assamento de Porcos? O quê faço com eles se a solução que o senhor me traz resolver tudo?

— Não sei, repetiu João, encabulado.

— O senhor percebe que a sua “maravilhosa” idéia pode desencadear uma crise de proporções catastróficas no país? O senhor não vê que se tudo fosse tão simples, nossos especialistas já teriam encontrado a solução há muito, muito, tempo atrás? O senhor, com certeza, compreende que eu não posso simplesmente convocar os milhares de técnicos, engenheiros e pesquisadores com PhD e dizer-lhes que tudo se resume a utilizar brasinhas, sem chamas, para assar porcos, e bye-bye para todos vocês! O que o senhor espera que eu faça com os quilômetros e quilômetros quadrados de bosques já preparados, cujas árvores não dão frutos e nem têm folhas para dar sombra e abrigo aos pássaros?

 — Não sei, não, senhor.

— O senhor não reconhece que nosso Instituto de Porcopirotecnia é constituído por personalidades científicas do mais extraordinário gabarito?

— Sim, eu acredito que sim.

— O que eu faria com figuras de tão grande importância para o país?

— Não sei.

— Viu? O senhor não sabe de nada! O que precisamos são soluções viáveis para problemas práticos específicos. Por exemplo, como melhorar as anemotécnicas atualmente utilizadas, como formar rapidamente profissionais para preencher as vagas existentes na região Oeste do país ou como construir instalações para porcos com mais de sete andares que sejam funcionais. Temos que caminhar muito ainda para aperfeiçoar o sistema, o senhor me entende? O que precisamos, acima de tudo, é de sensatez e não de belas intenções!

— Realmente, eu estou perplexo!, respondeu João.

— Bem, agora que o senhor conhece as dimensões do problema, não saia espalhando por aí a sua insensata idéia. Pode ser muito perigoso. O problema é bem mais sério e complexo do que o senhor jamais poderia imaginar. Agora, entre nós, recomendo que não insista nessa sua idéia boba pois isso poderia trazer problemas para o senhor no seu cargo. Não por mim, o senhor entende. Eu falo isso para o seu próprio bem, porque o compreendo, entendo perfeitamente o seu posicionamento, mas o senhor sabe que pode encontrar outro superior menos compreensivo, não é mesmo?.

João Bom-Senso não falou mais um a. Meio atordoado, meio assustado, envergonhado por ter transmitido a sua estúpida idéia ao diretor geral, saiu de fininho e ninguém nunca mais o viu. Os boatos se espalharam e tornou-se hábito dizer em reuniões de Reforma do Sistema, em tom de chacota, de forma cínica até, que falta Bom-Senso.
(autor desconhecido)

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

O calabouço da montanha.

Crédito Marcelo Petaz
Era uma vez, uma velejadora. Ela tinha o coração muito puro, o que facilitava sua compreensão sobre o mundo que a cercava.

Ela velejava pois gostava do mar e da dinâmica. Mas, gostava ainda mais de conhecer novas praias, novos povos, novas culturas.

Certa manhã, essa velejadora chegou a uma ilha. Era uma ilha bastante bonita e a população a acolheu sorridente.

Ela logo sentiu que as pessoas tinham o coração bondoso e se sentiu muito a vontade. No entanto, parecia que algo estava errado. A velejadora sentia no fundo do coração dela uma pontinha de angústia. Não sabia dizer do que era. Aquele povo era muito bom, e estavam sempre empenhados em mostrar-lhe as paisagens mais bonitas da ilha, os espetáculos mais coloridos e vibrantes, liam textos profundos e tocantes, ofereciam frutas doces e suculentas.

Mas, apesar das distrações, a angústia ainda estava lá, presente, insistente em seu coração. Impedindo que ela desfrutasse plenamente de tudo o que os ilhéus ofereciam.

E por mais que seus olhos vissem a beleza do brilho e da cor do que lhe mostravam, ela estava sempre atenta a qualquer dica que apontasse a causa de sua angústia.

Certo dia, viu alguém sendo carregado desacordado. Perguntou o que havia acontecido. "Não se preocupe, tudo está em ordem. Veja aquele pássaro, suas asas vermelhas indicam que o céu abençoa nosso amor."

Mas, aquilo a preocupou, e a asa vermelha do pássaro, outrora tão digna de sua admiração, agora não atraia sua atenção, apenas seu olhar vago. Enquanto sua cabeça buscava a verdade.

Perguntou a outros que lhe disseram. "Foi apenas um desmaio, as pessoas que passam por isso são tratadas." Outros se mostravam incomodados com a pergunta "Deixe disso, não há nada". Outros não acreditaram. Outros diziam que algumas pessoas precisam de tratamento especial, pois só assim todos podem ser felizes.

Nenhuma das respostas a satisfazia, e sua angústia aumentava. Passou a se afastar dos espetáculos. E caminhar sozinha por lugares isolados. Foi quando encontrou um ilhéu diferente. Ele estava sozinho e não usava penas coloridas e pedras brilhantes em suas roupas.

Ela não hesitou, e mesmo sem conhecer esse senhor de barbas brancas perguntou "Porque me sinto tão angustiada?" Como se esperasse por aquela pergunta, o maltrapilho lhe deu as costas e disse "Me acompanhe."

Seguiram por uma trilha fechada. Se depararam com uma montanha, o senhor removeu umas folhagens e revelou uma caverna. Entraram silenciosos. A velejadora sentia seu coração sendo oprimido, sem saber porque. Não estava curiosa, estava triste, cada passo que davam para dentro daquela caverna úmida e sombria, sentia seu coração mais e mais angustiado, desesperado, triste e oprimido.

A escuridão era tal que não podiam ver nada. Sentiu a certo instante o braço do senhor impedindo sua caminhada. Parou e passou a ouvir uns gemidinhos baixo. Sentiu que vinham de um lugar mais amplo.

Num dado momento chegou uma luz. Aos poucos foi definindo em seu campo visual que a trilha em que estavam havia chego na parede de um amplo salão, na entranha daquela montanha.

Aproximou-se da beirada de modo a ver sem ser vista. Viu inúmeras pessoas nuas e sujas, a luz vinha de uma tocha carregada por um ilhéu, outros traziam baldes com frutas velhas e iam despejando entre a multidão de famintos, que se agachavam para comer as frutas, mecanicamente, sem brigas nem interação alguma. Um ilhéu identificou um cadáver no chão, o colocou friamente sobre um carrinho. Depois de todos os baldes esvaziados e todos os cadáveres recolhidos, afastaram-se, tão silenciosos quanto haviam entrado.

Retornando a absoluta escuridão e tristes ruídos. Sentiu que o velho passou a seguir a trilha para saída da caverna. A velejadora chocada com o que havia assistido, seguiu trôpega e confusa.

A saída da caverna foi dolorosa, a luz cegava seus olhos, e seu coração batia forte, entregou-se a um choro compulsivo. Arfava meio sem ar, gritava de dor, e lágrimas vertiam de seus olhos como rios. O velho a observava, inundado numa paz indecifrável. Passado esse momento de maior desespero, o senhor os conduziu à beira de um rio de águas muito cristalinas. Onde a velejadora lavou suas lágrimas e tomou um pouco de água.

"Quem são?"

"Os indesejados. Pessoas que apresentam alguma característica física não aceita. Pelos muito escuros, barbas grossas. Ou que tenham hábitos desagradáveis, não queiram trabalhar, não gostem da roda da fogueira, ou questionem os deuses."

"Todos concordam com esse tratamento?"

"Alguns ignoram totalmente. Outros não suportam pensar no que se passa. Se entregam as distrações. Outros temem ser capturados. E a maioria acredita que essa seja a vontade dos céus, e que se os indesejados forem expostos ao Sol, esse ficará tão horrorizado que jamais voltará a brilhar novamente."

A velejadora ficou a pensar. Ela sabia que o Sol não se incomodava com pessoas de pelos negros pois já havia visitado muitas praias. E via que as pessoas de pelos negros se expunham ao Sol e que este voltava a brilhar no dia seguinte, independente de qualquer coisa!

A recordação do sofrimento daquelas pessoas a incomodava. E reparava que havia entre a maioria dos ilhéus um medo constante, um desconforto, uma culpa, que era dissimulada. Ignoravam as verdadeiras causas dos que desapareciam, e por isso temiam. Sem questionar, pois os que questionavam sumiam. Alguns rumores diziam que eram duramente castigados pelos céus. Assim, não sabiam se temiam aos castigos, ou aos céus, apoiando os castigos.

Muito atenta a velejadora ficou, analisando a todos, simulando o mesmo contentamento que via nos rostos aflitos. Até que reparou em uma ilhéu, que escondida esfregava um maço de ervas em sua perna. Essa ilhéu era uma amiga sua. Tentou aproximar-se de modo a não assustá-la. Foi em vão. Passado o susto e tendo sido as ervas jogadas longe, a velejadora questionou

"Porque faz isso?"

"Acho que meus pelos são muito negros. Minha mãe sempre me disse para esfregar essas ervas neles."

"Você sabe o que acontece com quem exibe pelos negros?"

A moça negou com a cabeça, e a velejadora sentindo que podia confiar totalmente na moça e que ela compreenderia, contou tudo o que havia visto e sentido. E explicou sobre as outras praias, onde pessoas com espessos pelos negros se bronzeiam sob o Sol brilhante.

A moça não chorou desesperadamente. Ela cerrou os dentes com raiva. E falou

"isso tem que acabar".

Então, bolaram um plano. A moça deixaria seus pelos negros crescerem escondidos e no dia de "graça aos céus e ao Sol" iria mostrar a todos que seus pelos haviam sido expostos ao Sol e no entanto, este continuava a agraciá-los com seu brilho.

Assim, o plano seguiu. Embora a moça tenha sentido muito medo de ser descoberta. Inscreveu uma apresentação especial para o dia, uma declamação, que foi aceita pela comissão organizadora, e seria exposta ao meio dia.

No dia de "graça ao céus e ao Sol" toda comunidade festejava contente, cantando seus hinos, e louvando aos céus e ao Sol. Diversos espetáculos se faziam presente.

Ao meio dia, todos voltaram sua atenção ao palco principal, pois a moça e a velejadora fizeram uma propaganda muito boa sobre essa declamação.

E assim, em frente a todos os olhares curiosos. A moça começou sua declamação.

"Ao longo desses anos, temos tido muita graça proporcionada pelos céus e pelo Sol. Acreditamos que somos felizes pois nos empenhamos em manter a ordem. E que o Sol jamais brilharia sobre nós se permitíssemos que pessoas diferentes de nós tivessem os mesmos privilégios e direitos."

O silêncio era dominante, todos olhavam assustados, pois em verdade, os ilhéus não sabiam exatamente como funcionava o Sol e o que exatamente separava os desejáveis dos indesejáveis. Eles tinham medo de falar e pensar sobre isso. E começaram a se perguntar se a moça estava fazendo algo bom ou ruim. Esse assunto nunca havia sido dito de forma aberta.

A moça vendo que os ilhéus musculosos, que carregavam desmaiados, começavam a se direcionar ao palco, fez mais forte sua voz.

"Pois em verdade eu vos digo, meus pelos espessos e negros estão a semanas expostos ao Sol, e ele brilha inalterável sobre mim, nesse momento."

Dizendo isso a moça tirou a fantasia de penas e brilhantes que escondia seus pelos e mostrou para toda a gente ver que o Sol não se incomodava com pelos negros.

O pânico se espalhou. Alguns gritavam, outros aplaudiam, outros desmaiavam, ninguém conseguia entender muito bem o que se passava.

Os homens musculosos retiraram a moça do palco. E essa seguia gritando

"Todos podem viver no Sol, não há distinção, o Sol não quer que ninguém mais sofra, libertem-se do medo. Amem-se, pessoas sofrem e morrem por causa do nosso temor ao Sol. Libertem-se!!!"

A velejadora gritava

"É verdade! Eu visitei muitos lugares e o Sol brilha em todos eles, sobre as mais diversas pessoas. Existe nessa ilha um calabouço onde pessoas vivem em condições degradantes por causa que vocês tem medo de perderem o Sol. Mas, isso é uma ilusão. O Sol brilha. E brilha melhor ainda quando não há medo, nem opressão".

A velejadora também foi levada sob o olhar incrédulo de todos.

Elas foram banidas da ilha. Tiveram que assinar um contrato alegando que não seriam assassinadas, por terem infligido a lei de Blasfêmia, desde que jamais voltassem a pisar na ilha ou ser vistas em seus arredores.

O povo ficou em sua maioria muito chocado, e consideraram um terrível e absurdo desrespeito o que a moça e a velejadora armaram. Consideraram uma afronta aos céus e um verdadeiro desrespeito à crença deles. Todos concordaram que não eram necessárias atitudes tão extremas assim. Alguns achavam que a o moça e a velejadora deveriam ter sido queimadas.

Outros começaram a pensar em tudo o que foi dito. E espera-se que algum dia, o calabouço da montanha deixe de existir, as pessoas sejam libertadas e possam pensar e ser como bem entenderem e que ninguém mais tenha medo de viver sem o Sol.


"Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor" Paulo Freire.

novos tempos

Eu venho de um tempo em que
o amor não era negociado no mercado
era compartilhado
a cura não vinha em comprimido industrializado
o respeito não tinha que ser conquistado
o conhecimento não era cobrado 
a criatividade não era um bem padronizado
a liberdade não era algo comprado
ninguém nascia devedor do Estado
ninguém era comandado
o céu era apreciado
eu nunca estava atrasado
o oprimido não era marginalizado
Eu venho de um tempo futuro