segunda-feira, 31 de março de 2014

Pobres me roubam

Esses pobres me roubam o sonho
Me roubam o sono
Por isso todos os pobres são ladrões
Porque eles existem
Nos roubando a ilusão, 
tão cuidadosamente construída
de uma sociedade justa e boa
Esses pobres expõe a fragilidade da ilusão
Que não tenha sido esse o objetivo 
de Amarildo
ou de Cláudia 
Foi isso o que eles fizeram e sempre farão
Arruinarão todo e qualquer argumento “meritocrático”
Esses pobres ladrões, com traços indígenas ou negros
Me roubam a ilusão de prazer, de felicidade, de grandeza
Me roubam a possibilidade de acreditar nos discursos
Essa pilhagem se reflete no tratamento que lhe damos
Nós de traços europeus, cidadãos de bem
Marginalizamos, matamos, torturamos e prendemos esses pobres
Porque insistem em existir
Em esfregar na nossa cara o quão fracassados somos nós
Por mais que fujamos dessa palavra
Já nascemos fadados ao fracasso
Disfarçado de tristeza passageira nessa sociedade de ilusão



quarta-feira, 26 de março de 2014

A formatura em engenharia

Aproveitando a onda da última postagem, hoje vou narrar as maravilhas da engenharia. Bem, é uma área de exatas, diferentemente do direito, há quem diga se tratar da porção "desumana" de nossa ciência (em oposição às ciências humanas), e em muitos aspectos isso é uma grande verdade.

Mas, aparentemente essa desumanização é um processo longo e demorado. Mesmo estando 5 anos (em raríssimos casos) ou mais dentro de uma sala de aula com professores autoritários que muitas vezes utilizam de terrorismo psicológico, alguns engenheiros insistem em ser humanos. E mesmo estando no espetacular palco do CIDEC, atravessando o grande portal que deixa o universo FURG para trás, não puderam engolir a injustiça sofrida por colegas que, em sua maioria, por merecimento deveriam estar também sobre o palco compartilhado daquele momento.

"Hoje 8 formandos não puderam estar aqui desfrutando essa data tão esperada por nós durante anos. Oito amigos, 8 filhos, 8 jovens que não são menos engenheiros do que nós que aqui estamos. Por causa de uma disciplina mal administrada no nosso curso[...] Não é o primeiro ano que um professor arrogante e despreocupado com os alunos reprova vários formandos."

(não estou conseguindo adicionar o vídeo, o link é https://www.youtube.com/watch?v=6S7l2SRw-As)

Fiquei especialmente tocada, pelo fato de o meu companheiro estar entre esses 8. Senti que de alguma forma eles criaram um vínculo, e que os que estavam no palco, embora felizes por terem concluído o curso não puderam desfrutar o momento de modo pleno, por terem vivido e reconhecido uma injustiça. Essa capacidade de ter o prazer diminuído, a felicidade retraída devido ao sentimento de compaixão, ao reconhecimento que não foi puramente o mérito que te deu aquele momento, mas também a sorte e o acaso, num processo onde sorte e acaso não deveriam fazer parte da equação, esse sentimento é raro e a exposição dele é nobre.

O mais comum é posar bem na foto, exaltar suas conquistas e que se foda o resto. Que se foda quem não passou no exame da ordem, quem não foi agraciado pela correção duvidosa do professor tirano de uma matéria que não existe em nenhum outro curso. Que se foda quem não está na posição que eu estou, quem não conquistou o que eu conquistei. Mas, para essa turma, o "que se foda" vai para quem não quer ouvir a verdade, para quem quer que nos calemos em forma de apoio ao status quo.

É claro que um discurso dessa profundidade sendo proferido no espetacular momento de solenidade, não haveria de ficar por isso mesmo. E o que vemos é um texto bizarro sendo publicado na página da FURG, com destaque em vermelho. Um texto assinado por um professor doutor diretor que poucos viram e raros conhecem:

25/03/2014 - 2071 acessos
Nota da Escola de Engenharia referente à Assembleia Universitária realizada dia 22 de março
A Escola de Engenharia da FURG remonta à criação desta Universidade e há 58 anos vêm formando engenheiros para nosso país, primando pela qualidade acadêmica e pelo compromisso de formar, acima de tudo, verdadeiros cidadãos. A cada ato de formatura se orgulha dos novos engenheiros que coloca a disposição da sociedade para a construção de uma vida melhor para todos.

Entretanto, é com pesar que nesta nota vem a repudiar as acusações proferidas contra essa Escola, na Assembleia Universitária de 22 de março último, por aqueles hoje egressos do curso de Engenharia Mecânica de nossa Instituição, e prestar os devidos esclarecimentos a comunidade acadêmica e sociedade em geral. Tal nota se faz necessária pelo respeito que a Direção da Escola de Engenharia tem pelos docentes, técnicos administrativos em educação e discentes que a integram.

Na manifestação de tais egressos, através de seu orador, engenheiro D. S. L., a Escola de Engenharia foi nominada de “omissa em todas suas instâncias” e “corporativista” no que diz respeito à situação de reprovação de alguns alunos na condição de expectativa de ser formando (condição esta definida pela Resolução 11/2006 do Conselho Universitário).

A Escola de Engenharia realizou TODOS os encaminhamentos pertinentes às ações reclamatórias dos alunos realizados dentro dos princípios da educação e respeito, estabelecendo revisão de provas e até mesmo procedimentos avaliativos substitutivos conforme acordo entre alunos, Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) e Direção da Escola de Engenharia, resultante do abaixo assinado processo 23116.001564/2014-71. A Escola sempre se prontificou em receber os alunos numa situação de diálogo, desde que este fosse regrado pelo respeito mútuo e educação. Cabe ainda destacar que a Direção também recebeu pais de aluno reprovado em cordial reunião realizada conjuntamente com a PROGRAD. Nestes termos a Escola de Engenharia comprovadamente se defende da condição de omissa na reflexão e busca de soluções ao problema apontado.

Já a infundada acusação de “corporativismo” ofende uma Direção que tem gerido seus docentes e técnicos em respeito ao Estatuto desta Universidade e ao Código de Ética Profissional do Servidor Público Federal (Decreto nº 1.171, de 22/6/1994).

A Escola de Engenharia entende que por vezes a emoção supera os limites da razão, mas não pode deixar de repudiar que uma Assembleia Universitária, a nosso ver tão significativa para estes ex-alunos, tenha sido utilizada para manifestações que visaram denegrir a imagem da Unidade que desempenhou seu papel de servir nosso país ao propiciar a estes indivíduos a obtenção dos títulos acadêmicos de engenheiros mecânicos.

Por fim, em nome da Escola de Engenharia, esta Direção deseja que todos estes novos engenheiros, incluindo aqueles que escolheram a Escola para continuar seus estudos em pós-graduação, alcancem o sucesso profissional e acadêmico, assim como espera dos mesmos uma reflexão madura sobre os fatos ocorridos.

Prof. Dr. Cezar Augusto Burkert Bastos
Diretor em exercício da Escola de Engenharia
25 de março de 2014

Qualquer ser humano que tenha tido alguma conversa franca com qualquer estudante de engenharia pode ter no mínimo umas 5 bizarrices para contar de professores tiranos e desumanos. No caso em especial, temos uma matéria que não faz parte de nenhum currículo de engenharia mecânica no país, é obrigatória na FURG. Ressalta-se, que esse número de 8 na verdade são 11, mas alguns pegaram transferência para PUC para se formar sem a tal da matéria. Desde o início do ano, tendo em vista o histórico da disciplina e que muitos dos estudantes estavam fazendo pela segunda ou terceira vez, procuraram a direção, sugerindo outro professor, outro método de avaliação, que se tornasse optativa.

- Calma, tá muito cedo, vcs tem o ano todo para estudar e passar na matéria. Ela é um diferencial do curso.

E assim seguiu o terror. Estudando como se pode, na prova vinha conteúdo do próximo semestre! As duas questões da prova ofereciam 3 possíveis resultados: 0, 5 ou 10. O questionamento da correção deveria ser feito a um professor inacessível tanto fisicamente, raramente estava na universidade, quanto espiritualmente (não acho uma palavra mais a contento dos materialistas, mas acho que vcs conseguem conceber alguém que está ao seu lado mas sua postura a torna inacessível?!). Acumulados zeros a turma volta à diretoria:

- Ah, mas agora está muito encima, não dá pra fazer nada.

Eu e acredito que a totalidade dos formados e formandos, repudiamos a carta de repúdio do Honorável e Respeitável Professor Doutor Diretor Bastos. E novamente fica claro e óbvio o vício em crucificar quem deveria ser aplaudido, e a negação sistemática de uma auto-avaliação crítica.

Certamente nada vai mudar. Talvez mesmo que fosse ateado fogo em pneus, nada tão pouco mudaria dentro da estrutura do curso. Mas, esse discurso teve um impacto fundamental em algo mais sutil, para mim de extrema importância, o estado emocional dos estudantes envolvidos. Ouvir publicamente de alguém que não tem nada a ganhar com isso (pelo contrário) que se seu filho não está lá não é porque ele é incapaz, porque ele é pior que os outros, mas por uma injustiça cometida por um professor tirano e prepotente e encoberta pelo corporativismo que rege essa escola, faz uma grande diferença para muitas mães desesperadas. Ver alguém começando uma carreira de engenheiro ciente de que existem outras pessoas no universo, que o mérito é muitas vezes a maquiagem da injustiça, e com outros objetivos além de conquistas pessoais me dá uma feliz sensação de leveza e vislumbre de dias melhores!

Agora, professor doutor diretor, de fato as emoções superam o limite da razão! Sugiro que tentes, e que ajude seus colegas a superarem também seus limites. É essa limitação que lhes tem impedido de ver o mundo e o ser humano em sua totalidade, ou próximo disso. O que sempre comentei talvez um auxilio psicológico pudesse ser positivo...

segunda-feira, 24 de março de 2014

A formatura em direito

Turma UFPE (Federal de PERNAMBUCO), 2003.
Faz um tempo fui prestigiar uma amiga que terminava seu curso em direito. As formaturas da FURG são realmente espetaculares, como não poderia deixar de ser na Sociedade do Espetáculo. Tudo bem, tudo lindo, é um passo importante, deixemos o espetáculo em paz.

Os discursos eram lindos. Sobre como são colegas e amigos, sobre como importa a felicidade e fazer o que gosta, sobre o investimento do dinheiro público na formação deles e como deveriam contribuir com a sociedade. Tudo muito lindo.

MAS, a observação mais repetida, todos que pegaram no microfone fizeram, as vezes mais de uma vez foi: "Essa é a melhor turma da história da FURG" sim eu também me contorci na cadeira, se prepara pq aí vem a justificativa "foi a maior porcentagem de aprovados na OAB"... Cuma?

Oh yeah, baby, somos amigos e nos amamos, só tenho que dizer, me desculpe seu perdedor, se vc não foi capaz de passar em um exame, eu passei, sou melhor e fui fundamental para marcar nossa turma na história da universidade. Inicia sua carreira com esse fracasso sendo esfregado sete vezes na sua fuça, durante o memorável momento de formatura. E não se esqueça devemos ser felizes, amar ao próximo e trabalhar em prol da sociedade!

Tirando esse lapso discurso/ideologia, endeusar de tal forma um exame... Eu não consigo concordar que quem passou no exame: apto a advogar, competente, bom advogado; quem não passou: inapto, incapaz de exercer a profissão, não aprendeu nada durante o curso, mas depois de pagar novamente e estudar para uma prova aí sim do dia para noite ele se torna capaz. Como pode uma avaliação assim tão importante ser feita por uma prova que gera lucros a uma empresa privada, que não precisa prestar contas.

Sigamos no relato da formatura desse importante curso para sociedade atual. Vocês são livres e devem fazer o que quiserem para serem felizes! Clap, clap, clap. Eu aplaudi emocionada. Agora vamos entregar a bolsa para os melhores alunos. Hein?

Ah é, me lembrei de minha amiga ter comentado porque ela ficava tão furiosa com os colegas que colavam. Os que tem o maior índice ganham uma bolsa para um cursinho para um concurso de um cargo público absurdamente bem remunerado. Essa é a liberdade de ser o que vc quiser ser pois o direito lhe abre um leque de oportunidades (como foi dito no discurso). Mas o que vc pode querer ser se todos aplaudem o grande campeão que vai ter a chance de tentar ganhar o mais alto salário da categoria?

Eu senti vontade de chorar. Pra mim nada disso faz o menor sentido. Salários exorbitantemente altos, isso afasta ainda mais (quem sempre esteve afastado) dos necessitados. E mascara o concurso público, todos podem, mas uns podem mais, uma vez que pagaram 5 mil por mês num cursinho preparatório, para o qual puderam se dedicar exclusivamente. E isso é o que vc tem que querer e o que aplaudimos feito macacos, repita o mantra "dinheiro", "status", "poder", enquanto claro, fala exatamente o oposto... Ninguém é premiado por participação na transformação social.

Não preciso dizer que no palco só haviam brancos com traços e sobrenomes europeus, preciso? Se na turma de Pernambuco é isso que vemos imagina no RS, eitcha, mas lhe digo se tem algo que ofende mais os gaúchos do que chamar sua piucha de fantasia é dar a entender a algum negro politizado que não existem negros no rio grande do sul. Eu cheguei bem perto de sentir meu pescoço ser esgoelado ao fazer isso uma vez. Aprendi bem, a invisibilidade é uma das formas mais cruéis de preconceito, os negros são sistematicamente varridos para baixo do tapete em profissões de pouco destaque, onde possamos seguir nossos dias desconhecendo sua existência. E o colega branco, classe média (ou média alta nessa nova classificação doida) ,descendente de europeus do meu lab insiste na máxima "no Brasil não tem negros". Depois de sentir desejo de gritar, trazer argumentos (De acordo com os relatórios da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem mais de 91 milhões de negros/pardos  no Brasil. Com isso, entende-se a porcentagem de negros no Brasil em mais de 50% - fonte) e sugerir documentários, internalizei que na verdade nesse caso isso não era um argumento, mas um teste de paciência. Quando é dito novamente algo do tipo abro um sorriso de miss, cara de paisagem, faço que sim com a cabeça, ouço durante 20 segundos (contados), e me volto para o computador.

Bem, passado o momento do espetáculo. Consegui garimpar uns momentos bonitos nos discursos para elogiar de modo simpático durante a comemoração. E lá fomos nós. Depois do jantar no momento dos doces, novos discursos, dessa vez vindos da família. A palavra-chave foi... "topo". Quando apontavam para cima eu buscava o que o dedo estaria destacando mas só via teto e lâmpada. "Quando você estiver no topo" "quando chegar ao topo" "não se esqueça de nós quando estiver lá encima"... e a coisa continuava.

Rumo ao "topo" misterioso.
Minha amiga linda em seu penteado e maquiagem especiais sorria sem saber muito o que dizer para não soar prepotente. Eu só conseguia ver um jovem assustada, recém formada atualmente desempregada, sem aval da venerável OAB, sendo esmagada por um monte de expectativas desconexas e sem base, que incluíam o cume de uma montanha isolada, com gelo e nuvens, representando altos cargos repleto de status e salários exorbitantes tão ou mais inalcançáveis quanto o cume da montanha. Expectativas baseadas no senso comum, na lógica "do que se deve querer", sem diálogo, sem espaço para outros quereres. Essa lógica mordaz faz com que qualquer outro topo que não envolva salário de 5 dígitos, poder e prestígio se torne um vergonhoso fracasso, e seu alpinista um pária social em potencial.

Para salvar a seção discursos meu amigo, e noivo da formanda fez questão de se levantar e dizer, em suma, que estava muito orgulhoso dela e independente do que ela decidisse fazer daria apoio total. Quando tive a oportunidade comentei com eles, que bom, gostei do que vc falou, tava muita pressão essa história de "topo", para minha surpresa ele pareceu preocupado "não era esse meu objetivo, eu não queria soar grosseiro, pareceu grosseiro?". Tranquilizado o amigo, sorri para ela e tentei desconstruir a imagem do assombroso "topo", o topo seria sua felicidade e auto-realização. Não sei se minha intervenção foi positiva ou se soei meio babaca, pois não ter como objetivo principal aumentar o salário faz de mim alguém bastante diferente de todos os seres humanos.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Os miseráveis (trabalhadores dos EUA)


“Miséria à americana: vivendo de subempregos nos Estados Unidos” nos conta como vive a massa trabalhadora dos EUA.  A escritora com PhD em biologia começou a se questionar como os pobres conseguem fechar as contas? Como é possível viver com um salário de garçonete?
É interessante lembrar que isso já passou pela minha cabeça, trabalhar de garçonete nos EUA, aprender inglês, ter uma experiência e ganhar alguns trocados. Afinal, quem teria medo de trabalhar na potência norte americana? Certamente, na minha cabeça adolescente seria uma tarefa muito fácil!
Pois bem, B. Ehrenreich fez isso. Deixou sua casa, seu carro, seu marido para “se fazer de pobre”, foi apenas com um capital inicial de 2 mil dólares (ou quase isso), e foi viver três meses um em cada estado diferente. Se permitiu em todos os empregos alugar um carro velho, e se recusou a morar nele, esses seriam seus “luxos”. Segue um trecho conclusivo:


“Quando o desemprego provoca pobreza, sabemos como expor o problema – tipicamente, “a economia não está crescendo com suficiente rapidez” – e sabemos qual é a solução liberal tradicional – “pleno emprego”. Mas quando temos emprego pleno ou quase pleno, quando há empregos disponíveis para quem quer que os procure e possa chegar até eles, o problema se aprofunda e começa a atingir a rede de expectativas que forma o “contrato social”. Segundo uma recente pesquisa de opinião realizada pela Jobs for the Future [...] 94% dos americanos acreditam que “quem trabalha em horário integral deveria ganhar o suficiente para manter sua família fora da pobreza”. Cresci ouvindo repetidas vezes, a ponto de causar tédio, que o “trabalho duro” era o segredo do sucesso: “Trabalhe duro e você vai em frente”, ou “É o trabalho duro que nos trouxe até onde estamos”. Ninguém jamais disse que seria possível trabalhar duro – mais ainda do que jamais se pensou possível – e ainda assim ver-se afundando cada vez mais na pobreza e nas dívidas.
Quando mães solteiras pobres tinham a opção de permanecer fora da força de trabalho recebendo pensão do governo (poderíamos comparar com o Bolsa Família?!), as classes média e alta tendiam a vê-las com certa impaciência, para não dizer nojo. Os pobres que dependiam da previdência eram atacados por sua preguiça, sua teimosia de se reproduzirem em circunstancias desfavoráveis, seus supostos vícios e, acima de tudo, por sua “dependência”. Ali estavam, contentes de viver de “presentes do governo” em vez de procurar a “autossuficiência”, como todo mundo, por meio de um emprego. Precisavam ajeitar as coisas, aprender a dar a corda no despertador, sair de casa e ir trabalhar. Mas agora que o governo acabou com a maior parte de seus “presentes”, agora que a maioria avassaladora dos pobres saiu e está labutando na Wal-Mart ou no Mac Donald’s – bem, o que vamos sentir por eles? Desaprovação e condescendência não servem mais, então que sentimento fará sentido?
Culpa, você deve estar pensando, cauteloso. Não é o que deveríamos estar sentindo? Mas a culpa não leva a lugar algum; a emoção apropriada é vergonha – vergonha de nossa própria dependência que, neste caso, é do trabalho mal pago de outras pessoas. Quando alguém trabalha por menos do que precisa para viver – quando por exemplo, passa fome para que você possa comer mais barato e com maior conforto – essa pessoa faz um grande sacrifício por você, deu-lhe de “presente” uma parte de seu talento, de sua saúde e de sua vida. Os “pobres trabalhadores”, como com aprovação os chamam, na verdade são os maiores filantropos de nossa sociedade. Negligenciam os próprios filhos para que os filhos de outros sejam bem cuidados; vivem em habitações péssimas para que outros lares fiquem brilhantes e perfeitos; suportam privações para que a inflação seja baixa e o preço das ações, alto. Ser um pobre trabalhador é ser um doador anônimo, um benfeitor sem nome, para todas as outras pessoas.
Algum dia, é claro – e não vou fazer previsões sobre quando, exatamente – eles estão destinados a se cansar de receber tão pouco em troca e exigir que sejam pagos pelo que valem. Haverá muita raiva quando este dia chegar, e greves e destruição. Mas o céu não vai cair e no final estaremos todos em melhor situação.”

A autora iniciou sua "pesquisa" na Florida, onde tentou por 2 vezes trabalhar de arrumadeira em hotéis, mas acabava sempre sendo enviada para atuar como garçonete, devido sua tez e sotaque “apresentáveis”. Quando as contas insistiram em não fechar e ela não via mais como economizar, tentou trabalhar em 2 lugares simultaneamente e conseguiu trabalhar de arrumadeira. 
No Maine trabalhou numa agência de faxineiras. A agência recebia 25 dólares por hora, enquanto as faxineiras 6,65. Para tentar fechar as contas,  trabalhava num asilo durante os finais de semana.
Em Minnesota, foi impossível encontrar moradia, como ela diz quando ricos e pobres competem por espaço, os últimos levam a pior. Teve que passar um tempo num hotel muito simples, sem cozinha, nem trava na porta, nem ventilador. Aqui descreve um pouco sobre as maravilhas de se trabalhar no Wal-Mart, uma empresa francamente assustadora. Quando, por ter passado o tempo combinado em seu hotel horroroso ela precisa mudar e fica temporariamente em outro até achar uma moradia adequada, passa a pagar muito caro para trabalhar, e o projeto precisa acabar antes do tempo, com essa triste conclusão: “não é preciso um diploma em economia para ver que os salários são baixos demais e os alugueis altos demais [...]muita gente ganha muito menos do que precisa para continuar vivendo”.
Quanto mais pobre se é mais pobre tende a se ficar, sem a possibilidade do capital inicial para arranjar moradia menos ruins (que exigem um antecipado), acaba-se aceitando locais mais caros e mais longes do local de trabalho e sem cozinha para preparo da alimentação. Tendo que gastar ainda mais (dinheiro, tempo e energia) no transporte, alimentação e moradia.
No inicio Barbara se preocupava em como conseguiria esconder seu PhD em biologia, mas o fato é que não foi notada grande diferença entre ela e suas colegas que mal conseguiram terminar um ensino fundamental fraco.  Os trabalhos eram mecânicos e fisicamente desgastantes. Podemos desperdiçar ao longo de gerações grandes mentes, poetas, artistas, físicos, inventores, sem nem nos darmos conta... E quando não há espaço ou incentivo para criatividade ou inovação "todos os gatos são pardos", e todos erguem igualmente um aspirador de quase 5 Kg nas costas...
Sempre havia um gerente para reprimir qualquer possível “roubo de tempo”, ao longo das 8 horas de serviço, tirando as pausas de 15 minutos, não se pode sentar, comer, beber água, conversar, ou ir ao banheiro.  O custo de manter essa repressão (salario de gerente, câmeras), bem como os exames antidrogas (quando a empresa fornece) é certamente uma pressão ainda maior pra manter os salários baixos.
Existe forte pressão contra qualquer possibilidade de revolta, o Wal-Mart apresentava cartazes contra a "maldade" do sindicato. Dificultava-se ao máximo qualquer contato entre os funcionários. Somado ao esforço em fazer os funcionários se sentirem suficientemente desvalorizados para acreditarem que o quanto ganham é o quanto merecem, e não se rebelarem jamais, o que não é muito difícil, pois mesmo testes com animais revelam que macacos e ratos “forçados a um estado de subordinação em seus sistemas sociais adaptam em conformidade a química de seu cérebro, tornando-se “deprimidos”.
Além de não terem acesso a planos de saúde ou a um sistema público eficiente, é comum o trabalho pesado e repetitivo causar lesões a longo prazo, as dores incentivarem o consumo de analgésicos (baratos de qualidade duvidosa), com os baixos salários a alimentação se restringi a itens baratos, ou cestas de auxílio, sem vegetais ou frutas frescas, mas cheios de gordura e açúcar (o que me leva crer que os que não sentem fome estão subnutridos), e bairros e moradias mais acessíveis são comumente insalubres. O pobres trocam por míseros salários, não apenas seu tempo, como sua saúde. Para que possamos ter o prazer de poder comprar roupas baratíssimas na renner, tirar peças de arara e cabide e deixar por aí, ou provar e simplesmente abandoná-las no provador, acreditando que a fada madrinha se encarregue de magicamente por tudo em ordem na nossa ausência.
Dois pontos me deixaram um pouco assustada. Um é ver a grande nação, o Império dos EUA, como um país pobre, mas coberto com uma espessa camada de maquiagem.
E segundo, como nós classe média (que sim, também não estamos bem como deveríamos) exploramos diariamente de um modo cruel e desumano milhares de trabalhadores miseráveis. Cada cafezinho que vc toma para aumentar seu rendimento, teve mãos miseráveis no transporte dos grãos, no plantio, na colheita, na aplicação dos produtos químicos, para fazer o café, para lavar a xícara, e você mal olha nos olhos de quem lhe atende. Semana passada fui na renner, precisava comprar um top, peguei 2 fui ao provador no andar de baixo, na saída pedi para a moça "eu posso guardar esse aqui", ela pareceu extasiadamente feliz "jura? muito obrigada!", a arara de devoluções estava gigante. Não doeu colocar um top no cabide e devolver para arara que eu tinha tirado. Aliás, achei isso de um anarquismo extremo. E hoje, buscando o carro de uma manutenção, fui pegar um cafezinho, era tão arrumadinho, desconfiei "posso pegar um?" perguntei para senhora encarregada de lavar as xícaras "claro". Tinha tantas opções... "qual a senhora mais gosta?" ela me olhou, talvez achando tudo aquilo muito inusitado "eu não sei, os funcionários não podem tomar". Fazia tempo que não me sentia tão sem graça, não consegui fazer nada além de engolir um capucino e sair correndo desconcertada... 

segunda-feira, 10 de março de 2014

Sociedade em crise e vislumbres de novas possibilidades

Não é mais questão de política, de como regular o mercado, para que ele se auto-regule, trata-se de gerir os recursos que temos. E não digo apenas de recursos materiais, como terra fértil, metais, vento, senão também recursos mais sutis, como a criatividade humana, a tecnologia potencial, e até os sentimentos nobres. Convenhamos, sentimentos nobres são sistematicamente desincentivado.

Porque temos empregos? Com tantas máquinas. Pensa, a maioria dos empregos são tediosos e totalmente inúteis. Para transferir a placa de meu carro, falei com aproximadamente 15 pessoas, essas me atenderam diretamente, no balcão do detran, na vistoria, para fazer a placa, no banco, e se não precisássemos de placas, ou melhor, se não precisássemos de carros, por meio de um transporte público eficiente? Quantos empregos seriam/são desnecessários! E não é ruim não ter emprego, essas pessoas passam a maior parte do seu dia fazendo uma atividade chata pra caramba, como passar lápis sobre uma etiqueta colada no chassi! Esse camarada com tempo livre poderia compor canções tão lindas como as que jamais iremos ouvir. Se o governo britânico não tivesse (como não tem atualmente) investido em cultura Jonh Lennon teria passado toda sua vida empilhando caixas, e nós jamais cantaríamos e nos inspiraríamos com Imagine. Emprego não é bom, é uma bosta, trabalhar no que realmente gosta (sem depender do salário) é bom. Criar emprego é a pior medida política que pode-se usar de propaganda eleitoral. Temos que pensar em diminuir empregos, aumentar distribuição e tempo livre.

Mas, porque as pessoas buscam emprego feito loucas? Pq mesmo o mais humilde dos seres humanos, o dotado de zero ganância precisa de emprego? Por causa do dinheiro! Não do dinheiro em si, mas do passaporte para condições mínimas de vida. Alimentação, remédio, informação, conhecimento, cultura, atividade social, transporte. Não precisamos de dinheiro, ninguém precisa de dinheiro, mas precisamos e muito do acesso à bens que só nos oferecem mediante a essa troca inescrupulosa. Passa tempo. Nessas férias fui a uma praia e haviam várias pranchas de remar, elas ficavam em pé, paradas, porque eram alugadas, e quando não havia dinheiro para alugá-las, elas ficavam paradas e alguém desejoso de brincar, ficava passando vontade, entediado, mais pobres não podem nem chegar perto de uma.

Jacques Fresco conta que na crise de 30 "Foi difícil entender o motivo porque milhões de pessoas estavam sem trabalho, sem teto e prestes a morrer de fome, enquanto todas as fábricas estavam ali, os recursos não tinham mudado." Nesse momento começou a entender e questionar e entender e criticar as "regras do jogo" econômico. Viveu também a segunda guerra mundial "onde as nações se revezavam na destruição mutua e sistemática. Calculei que toda destruição e todos os recursos desperdiçados na guerra poderiam facilmente ter provido todas as necessidades humanas no planeta."

Seguiu observando criticamente as medidas governamentais economicistas e "desenvolvimentistas" e depois de muito ler (aparentemente muito e sobre tudo, religião, sociedade, poder, comportamento humano, economia), pensar, propor, dialogar, viajar, trabalhar, se envolver em projetos diversos, ele passou a identificar as raízes do problema e idealizar suas soluções. Chegou então a essa bela possibilidade chamada Projeto Venus. Venus é a cidade da Florida em que se encontra seu centro de pesquisa, mas é um nome muito curioso, e feliz, pois diversas linhas místicas mantem a tradição de dar à "Deus" um aspecto feminino (não é mulher, o feminino existe em diversos graus nos homens também), o qual estaria mais voltado a generosidade, constância, cooperação, as sociedades matriarcais que houveram não tinham uma natureza guerreira e opressora. Mas enfim, sigamos!

E porque existe o dinheiro? Seria para controlar o acesso a recursos limitados. ok, mas não somos capazes de pensar em outras formas de lidar com esses recursos? Porque temos que limitar moradia, transporte, saúde? Esses "recursos" são limitados? Uau, pois quando eu entro num supermercado não me parece, muitos autores que estudam a "geopolítica da fome" concordam que produzimos alimento suficiente para 12 bilhões de seres humanos, somos em 7, dos quais 12,5% passa fome (fonte). Será mesmo o dinheiro uma maneira inteligente de gerir recursos? Quantos médicos se formam por ano, o conhecimento é um recurso limitado? Meu amigo economista resolve todos os problemas em 2 segundos, aumenta o preço daqui, investe ali, fiscaliza acolá... bem, convenhamos, esperar que o capitalismo traga abundância a todos é muita ingenuidade, não?! A escassez e a miséria é interessante para a manutenção do satus quo, será que se todos tivessem acesso garantido à saúde, alimentação, lazer e moradia se submeteriam a empregos desumanos e degradantes? A pobreza é um baita negócio nesse atual sistema, pode-se pagar 500 reais de aluguel numa casa com 3 dormitórios nas favelas do Rio:

"Segundo o Data Popular, as favelas geram por ano cerca 63 bilhões de reais. Por isso vale a pena mostrar a favela como um lugar formidável [sobre uma matéria do Fantástico que mostrava as maravilhas do morro]. Os recursos não permanecem nas favelasO ciclo da economia gira em torno das grandes redes. Vale a pena colocar uma Besni, um Itaú e uma Casas Bahia em uma favela: em alguns estados o governo oferece como contrapartida isenção de imposto para as empresas - uma espécie de insalubridade, a mão de obra é barata, o povo paga as contas em dia, mesmo com a geladeira, adquirida por pressão no intervalo da novela, que anunciava a redução do IPI, vazia."

A vida e a qualidade de vida deixou a muito tempo de ser prioridade. Mesmo a informação, dada por jornalistas, não busca a verdade e sua difusão, busca o lucro, acumular dinheiro a patrões bastante distantes da realidade que são noticiadas. O mesmo com os avanços tecnológicos e na área da saúde, será interessante economicamente desenvolver a cura do câncer, ou meios de evitá-lo? No meio acadêmico até, vi esses dias que um estudo que buscava relacionar transgênico com câncer foi terrivelmente criticado, principalmente por cientistas que trabalhavam em projetos de patentes de transgênicos, ganhado certamente muito dinheiro.

O universo do pensamento é livre, podemos idealizar o que quisermos: e se não houvesse dinheiro? Você pensa que ficariam todos os seres humanos ociosos, se comendo, e sei lá eu fazendo o que mais? A única coisa que te motiva é ganhar dinheiro? E se vc não precisasse, não há nada que te interessa? Desenho, filosofia, música, engenhocas, corpo humano, nada? Imagine que vc pudesse entrar em um supermercado e pegar o que quisesse para se alimentar, para vestir, totalmente livre. Nossas férias e fim de semana são poucos "produtivos", pois gastamos toda nossa energia no emprego.

O mundo está um caos, inteiro e completo. Nosso ambiente cada vez mais poluído e degradado, desculpe, mas não se iluda pensando que se todos reciclassem, se todos poupassem, se todos... pq não vai acontecer, enquanto as inovações forem disputadas a tapa por grandes corporações desejosas de mais lucro, cada tecnologia que aparece não é para o bem comum, cada politica que se cria também não, todas as inovações são para aumentar os lucros, ou não recebem investimentos (vide Tesla que morreu pobre investindo tudo o que tinha no desenvolvimento de energia gratuita e powers) e nessa onda também se focam as medidas sociais (o ciência sem fronteiras tem parceria com grandes empresas e o objetivo não é melhorar a qualidade de vida de forma holística, não é que o conhecimento adquirido seja aplicado na melhora da vida dos que necessitam, através de inovações de ponta, basta ver o foco dos cursos e as empresas parceiras, é uma medida de criar mão de obra qualificada para aumentar os lucros, e esses lucros são importantes pois geram emprego... e novamente não há investimento em emancipação, capital social e empoderamento popular). Você pensa que é livre mas não é. E nem será enquanto tiver que pagar as contas, e sem "pagar as contas" vc não se transporta, não come, não se cura, nem se mantém saudável, não se comunica. E é possível mudar isso, afinal os recursos existem, as pessoas existem, elas tem criatividade para tecnologias, o que pode deixar de existir é o que regula o acesso a tudo isso, o dinheiro. E, quando deixar não haverá exclusão, não haverá diferença entre brancos e negros, homem e mulher, artista ou engenheiro, quer dizer haverá diferença, mas nenhum será excluído, todos poderão entrar na mesma loja e terão as mesmas possibilidades, as diferenças serão internas, como aptidão, interesse, etc. mas não serão diferenças qualificadoras "melhor ou pior".

É claro que haverão problemas e limitações, pois tudo é dinâmico, e talvez esse modelo possa deixar de servir em algum momento, como, convenhamos, o modelo atual não serve mais...

Vale a pena assistir ao documentário Paraíso ou Esquecimento, estamos em um momento importante. Muitos renomados ecologistas (Odum - O Declínio Próspero) e economistas (Meadows - Os Limites do Crescimento) acreditam ser nossa fase atual um ponto crítico, ou seguimos com a lógica atual (ainda que maquiada de medidas "freio de mão" como reciclagem, protocolo de kioto e blablabla) explorando, extraindo, poluindo, concentrando e lucrando, ou aproveitamos que ainda temos energia não renovável o suficiente e construímos uma nova sociedade sustentável, pautada em outro paradigma, que não o economicismo tradicional calcado na competição e acumulação. Nos livros defendem que essa é uma escolha que deve ser tomada, e quanto mais rápido mais próspero será o "declínio" da atual economia e civilização (como é nesse momento), não tomar essa decisão implica em esgotarmos as possibilidades de escolha e interferência nesse declínio, que é inevitável.

sábado, 8 de março de 2014

a passividade forjada que nunca existiu

8 de março, assim que me lembrei que esse é o “dia internacional da mulher” pensei que poderia utiliza-lo para escapar da louça. Mas, já era tarde, eu havia esfregado o chão, lavado roupa, capinado o canteiro e estava segurando um prato com as mãos cheias de sabão... E sinceramente, deixar de fazer isso não teria feito meu dia mais feliz, no meu caso eu não faço por obrigação, mesmo porque as tarefas domésticas por aqui se não são igualmente divididas, pendem mais para o sexo masculino, em nossa casa anarquista. Ademais não é essa a importância da data, não é para ganhar chocolates (com cacau colhido por mãos escravas) nem flores (plantadas aos montes, com tantos produtos químicos que mal são capazes de apodrecer), nem tão pouco para ter um dia de princesa (aliás não deveria o termo se associar mais a nobreza de caráter do que a vadiagem e exploração explícita de terceiros?).

Não, não, não, pensei comigo, esse dia é para lembrarmos que em média 15 mulheres são mortas, a cada dia, pelo simples fato de serem mulheres. Eu em relacionamento sério com um feminista nato e frequentando espaços relativamente civilizados (no bom sentido do termo), não corro risco de fazer parte dessa macabra estatística. Esse dia não é para mim. Foi o que meti na minha cabeça e segui meu dia, como todos os outros. Apenas curtindo algumas postagens feministas.
Mas eis que aos 45 do segundo tempo. Ouço os rapazes de casa comentando sobre o Game of Thrones, a respeito de uma parte que a mãe diz que "o que o rei fala vira a verdade e vira a história". Instantaneamente sou arrastada até a história de Wu Zetian.
Me diga, quantos nomes de rua femininos vc conhece? Quantos bustos femininos vemos expostos pelas praças? Nomes de cidade? Não que isso signifique lá muita coisa, ainda mais no Brasil que escolhem a dedo os nomes e rostos para serem homenageados, e os verdadeiros heróis são sistematicamente ignorados.  De todo modo, quantas filósofas vc leu, ou ouviu falar? Quantas cientistas? Deusas? Líderes políticos? Mestres iluminadas?  Revolucionárias simbólicas? Será que não houve? Será que só hoje as mulheres são capazes e tem permissão de ousarem e agirem, e contribuírem para o progresso moral, intelectual e social da humanidade? E espiritual? Não houveram personalidades femininas dignas de serem lembradas? Porque tanto se fala de Sócrates e tão pouco de Aspásia? Será que não houveram mulheres notáveis, ou será que foram sendo pouco a pouco removida dos livros de história? Tão pouco os que leram Rosa Luxemburgo, ou Ema Goldman!
Voltemos a nossa Wu. Citada no maravilhosos livro: Feminino Ativo, Feminino Solar. Wu é apresentada na história chinesa como um ser diabólico de tão sanguinário. Bem, de fato, muito sangue foi derramado sob suas ordens, passível de crítica, no entanto, não teria ela derramado mais sangue do que outros imperadores a ponto de justificar tal fama. Pq sua história e contada com esse enfoque?
De início partimos que mesmo hoje, com certa liberdade que gozam os historiadores, havemos de convir que a história contada é bastante parcial. Na China essa parcialidade é acentuada, e os escritores relatam o que lhes é ordenado dizer, ou então não dirão nada.
Wu cometeu uma primeira grande gafe ao nascer sem um salsichão pendurado entre suas pernas. Mesmo num tempo de alguma valorização do feminino, mulheres eram consideradas pessoas de polaridade yin, passivas e submissas, naturalmente, sem capacidade física ou moral de reinar. Confrontar essa “lei natural” determinista de modo prático a transformava, para muitos, em um monstro antinatural.
Segundo, e possivelmente mais importante. Wu traz reformas profundamente democráticas. Instaurou sistemas de concurso público para altos cargos do Estado, “projetou diversas medidas humanitárias, tais como diminuição dos impostos, para favorecer o desenvolvimento da agricultura e da indústria da seda; isentar de trabalhos forçados os habitantes de algumas zonas e, de modo geral, reduzi-los um pouco em toda parte; converter a atividade militar em educação moral; limitar os excessos de luxo; promover o taoísmo; revalorizar o papel de mãe e e o respeito que lhe é devido [...]” Conquistando assim o apoio incondicional do povo e o ódio da classe aristocrática.  A qual após sua morte se dedicou a destruir sua história para não haver risco de que semelhante ameaça voltasse a lhes acontecer.

Ainda hoje exercer o papel de liderança num corpo feminino é um desafio bastante grande: 
"Em uma experiência comum, feita em vários países, um grupo de pessoas é convidado a avaliar um discurso feito por um homem, enquanto outros avaliam o mesmo discurso feito por uma mulher. Geralmente, todos dão uma nota maior quando o discurso é feito por um homem.
A autopromoção é uma estratégia útil para os homens, mas quando as mulheres ressaltam suas próprias realizações, provocam antagonismos ou não despertam interesse. E as mulheres parecem ficar ainda mais ofendidas com a autopromoção feminina do que os homens. Isso cria um enorme desafio para mulheres porque, quando ela é uma pessoa modesta, é considerada medíocre. Se ela procura promover suas realizações, porém, é taxada de presunçosa. Para o azar das mulheres, a liderança feminina pode ser reconhecida pela competência ou pela simpatia, mas não por ambas." (Link)

Feminino Ativo
Voltemos à China, ainda hoje podemos encontrar em Sichuan o povo Moso. Embora sua cultura esteja cada vez mais deturpada pelo acesso constante de turistas, essa sociedade se construiu num viés matriarcal. Eles não reconhecem o casamento, aliás, reconhecem como um aprisionamento do amor, que segundo sua concepção deve ser livre, “os sentimentos só conseguem desabrochar em liberdade”. Assim, as mulheres encontram seus namorados a noite como, quando e por quanto tempo querem. Quando engravidam, cuidam de seus filhos com sua família, na casa da mãe com seus irmãos. Não há a figura paterna, no máximo um tio. A casa é posse da mãe, que passa a uma filha mulher. Pode soar um pouco injusto com o sexo masculino, e talvez seja mesmo, mas eles não são objeto de maus-tratos. O fato de os homens não terem direito a propriedade, nem da esposa, nem da casa, nem dos filhos, é visto por eles como fator crucial para manutenção da harmonia:

“com elas, não há conflitos, tudo é mais tranquilo [...] o elemento masculino é causador de problemas quando possui algo sujeito a rivalidade [...] os homens [mosos] não possuem nada [portanto] eles não tem nenhum motivo para brigar.”
Esse livro traz diversos exemplos de mulheres e sociedades que nos convencem de uma vez por todas que essa história de feminino estar relacionado a passividade e submissão é uma grandiosíssima mentira. Períodos em que o feminino era respeitado e valorizado apresentam verdadeiros momentos de progresso e avanços tecnológicos e morais. O mais interessante é analisar como esse conceito (feminino = passivo, submisso, inútil, servil) é construído de modo maquiavélico, ninguém nunca me disse, não que eu me lembre, claramente “cala boca que vc é mulher e só fala asneira”. Hum, lembrando melhor talvez meu irmão tenha me dito algumas vezes, mas era “zoeira”, assim como, tenho me lembrado, algumas piadas e correntes de e-mail. Mas o fato alarmante é que essas infelizes piadas foram endossadas pelas aulas de história, matemática e física, ao sempre endeusarem cérebros masculinos (brancos de origem europeia, diga-se de passagem, classe alta, provavelmente uma vez que educação é seletiva), idem na religião “pai, filho, espírito santo” (em muitas crenças silenciadas essa trindade é feminina, ou composta por casal e filhx, mesmo pq se Deus está associado à criação quem está mais próximo desse dom, o feminino ou o masculino?) ou Kardec, Buda, Islamismo... Eu, de um modo ou outro, sempre soube que mulheres são seres inferiores, eu tentava achar algo que me provasse o contrário, mas na realidade eu sabia que éramos. Tempos difíceis esses...
Agora eu sei que não somos inferiores. Esse livro está sendo uma luz muito importante nessa consolidação desse meu novo saber. Eu sempre encarei a menstruação como um castigo, como algo realmente degradante, vergonhoso, monstruoso, uma moléstia. Mas sabe, ter essa ligação tão forte com um belo astro redondo e majestoso, é uma linda relação com a natureza. A capacidade de dar a luz, gerar vida é muito mais ativo do que a passividade de ser um receptáculo ao líquido da vida masculino, conceito inculcado a muito que ainda hoje tem repercussão quando não cabe a mãe decidir que tipo de parto ela escolhe ou se quer parir.
Não minhas amigas. Não somos passivas, e não devemos, em hipótese alguma, nenhum tipo de submissão, isso é contrário a nossa natureza, e só há de trazer dor, sofrimento e infelicidade. Obviamente, não é a autoridade e tirania, por outro lado que nos darão a paz de espirito oriunda da felicidade. Mas, o respeito mútuo às liberdades e escolhas.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Ecologia da evolução de mim mesma e como fiz as pazes comigo

Tenho repetido e me convencido da certeza absoluta de que esses anos de mestrado me transformaram, total, profunda e radicalmente!

De fato, foram leituras, aulas e trabalhos intensos, conceitos novos, e para mim uma forma de ver a história totalmente nova. Bem, sabe, meus pais sentem falta dos belos tempos da ditadura, e com muito custo me mantiveram num dos colégios mais caros da cidade, desenhado para atender as demandas da elite local. E eu sentia que não me encaixava muito bem aí. Mas, não identificava exatamente o que tanto me incomodava. Passei a ser crítica das aparências e ter asco de patricinhas, enquanto ao mesmo tempo internalizava conceitos trôpegos de que "ser contra o sistema" é coisa de idiota que busca uma desculpa para justificar sua vadiagem, que a dignidade do ser humano está no quanto este trabalha (e trabalho aqui no sentido de atividade profissional remunerada), que o objetivo máximo é acumular bens, que a pobreza existe devido a malevolência de pessoas irresponsáveis, acomodadas, ingratas e aproveitadoras por aí a fora.

Assim, quando me apresentaram algumas leituras sociais fiquei maravilhada, textos tão lindos e tão revoltantes desnudavam uma injustiça histórica, na qual eu meio sem certeza me posicionava do lado do opressor ou de modo míope e parcial do lado do oprimido, mas sem fundamento e sem que a decisão fosse realmente minha. Bem, não foi só isso que me levou a uma mudança de paradigma. Mas, o fato é que essa que eu percebia como uma "nova Keith" (pós mestrado) passou a sentir pela "Keith antiga", e vez por outra eu pensava nas conversas que não tive, nas pessoas de quem não me aproximei, e nas que posso ter influenciado, nos opressores que defendi, nas opressões que incitei e participei (ainda que no discurso da opinião leviana). Eu também lembrava de mim com momentos intensos e profundos de melancolia, ousaria dizer depressão, o que agora julgo ser devido a contradição de ter a ideia de um bem espiritual em conflito com o social, do tipo: "ame seu próximo como a ti mesmo" vs "bandido bom é bandido morto".

Na semana retrasada, passei por uma "intervenção" na FURG, era da matéria de "arqueologia do capitalismo". Foi uma vivência muito intensa. Inicialmente se escolhia um nome aleatoriamente numa caixinha, a menina me disse:
- Vc vai ter que achar essa pessoa.
Eu sorri extremamente empolgada com o jogo, fiz comentários de alegria e a menina séria não deu muita trela e se afastou.
A primeira salinha estava forrada de saco de lixo preto, era escura, abafada com cheiro de polietileno (sei lá), com uma voz narrando seus momentos de tortura, uma tv com imagens preto e branco, fiquei com medo de ver alguma cena forte, olhei furtivamente para tela, enquanto tentava entender o que estava acontecendo, eram exibidas imagens dos locais de tortura, vazios. Incomodada, preferi não procurar o rapaz do papel por lá. Eu me senti mesmo com medo, não sei dizer exatamente, tive medo de ter que ficar mais tempo naquele lugar horrível. Saí rápido.
Logo na outra sala havia um projetor, com fotos, nome, idade, ocupação e data de desaparecimento, graças a ditadura militar. Meu medo, que era um embrulho no estomago virou um nó na garganta. Me obriguei a esperar pela foto do rapaz. Estudante, 32 anos. Senti um pouco de raiva por terem me envolvido em algo que eu nunca quis de verdade saber. Depois lembrei do black bloc e de como eu gostaria de estar nas manifestações de rua hoje, e como de alguma forma eu estava naquela época e naquele  papel poderia estar o meu nome. E então senti uma afinidade com os jovens das fotos projetadas.
Na próxima sala era um quarto vazio, arrumadinho com livros e máquina de escrever. Nesse momento senti vergonha de todas as vezes que pensei e falei algo pró-ditadura, mesmo por ter sido desinformada, sob influência. Senti culpa. E mais uma vez, culpei uma "Keith antiga", que me defendi para mim mesma, "não existe mais".

Até que esse fim de semana, terminei meu segundo diário! Desde 2007 tenho escrito com certa constância. E nesse processo emocionante de troca de diário acabei juntando coragem e dando uma lida no início do primeiro. Tive um pouco de medo de quem eu veria naquelas páginas, mas me entreguei a essa leitura.

O que notei é que em realidade não se tratava de uma completa imbecil. E fiquei bastante surpresa em ler constatações que me impressionaram, com a consonância com a posição que assumo hoje. Digamos que tratava-se de uma anarquista em potencial. As leituras indicadas no mestrado me salvaram de um ciclo vicioso, elevaram meu patamar de discussão, me dotaram de argumentos, mas de algum modo eu já estava nesse caminho. Só estava um pouco embolada em um labirinto, dando voltas na montanha sem mudar de altitude.

Parece tudo cada vez mais dinâmico, e já sinto como se estivesse completando mais uma volta, nessa mesma altura, me adaptado ao novo angulo de visão, e começo a me aborrecer com a monotonia da paisagem. Mas, onde estará a trilha para subir mais um pouquinho? Talvez esteja eu apressada demais.

Enfim, deixando minha filosofia barata um pouco mais palpável, apesar de eu ter consciência de estar me sentindo mais livre, plena e feliz agora eu não era totalmente desprezível, "antes". E descrevo no diários dias bastante agradáveis, e sentimentos bastante puros e justos! Claro que eu controlo e manipulo o que escrever no diário, e ideias suicidas (que penso em juntar "material" para um post exclusivo) costumavam ser calculadamente escondidas, bem como alguns julgamentos alheios mais "cruéis". Mas, o fato é que estou em processo de me entender mais que me julgar, e fazer as pazes comigo mesma.

 Decidi me "expor" dessa forma, principalmente porque reparei essa situação num querido amigo. Que mudou fisicamente, e vive repetindo como ele era isso e aquilo. Eu concordava e ajudava na tiração de sarro (alias tirar sarro por muito tempo foi um inconveniente hobbie meu). Mas, depois de me dar conta de que na verdade ele era o que deu base para ele ser, mudei meu discurso, ainda sem saber muito o que dizer, comentei:
- ah, vamos lá não era tão ruim assim...
foi um comentário perdido, na roda de amigos, dentre tantos consensuais que não deixaram de apontar, com um certo prazer, as "falhas" do "antigo" amigo. Ainda vou melhorar esse discurso e na próxima oportunidade convencê-lo, e a mim mesma, de que somos um e nosso passado integra o que somos no presente, ainda temos o que aprimorar, e julgar e "xingar" nosso suposto passado pode nos fazer temer a implacabilidade do julgamento do eu futuro. E principalmente, essa evolução linear é ilusória, nosso aprimoramento é bem mais complexo, e o eu antigo alcançava reflexões que superam as do eu atual e futuro, ele vive em nós, apenas selecionamos quais partes dele gostaríamos de carregar, e paulatinamente abandonamos as que julgamos não nos servir!

Seria uma seleção natural de qualidades minuciosamente identificadas no eu atual, somada a identificação de características consideradas por eu mesma desagradáveis e o trabalho diário (esse sim referente a "cuidado ou esmero empregado na feitura de uma obra") do cultivo das qualidades somadas ao contorno das características desagradáveis. Informação e experiências auxiliam na identificação e seleção do que cultivar e o que polir! Como o que a "Natureza" faz com a Vida, selecionando, adaptando, excluindo, criando, buscando a complexidade. E nesse caso, sustento que (como comigo), a evolução não teria sido oriunda de mutações ao acaso jogadas a esmo e que teriam repercussão dependendo unicamente do sucesso reprodutivo, mas orientada pela seleção rigorosa de um Inteligência que direciona os sistemas à complexidade.

Tal configuração complexa teria permitido a manifestação da consciência e alguns teorizam que


uma das vantagens evolutivas conferidas a nós pela consciência é a flexibilidade, sensibilidade e criatividade(Searle)

sendo nossa evolução um caminhar ao aperfeiçoamento dessas três características. Isso corrobora a sensação que tenho de ter evoluído especialmente nos últimos dois anos, pois foi o período em que assisti um aprimoramento substancial na minha flexibilidade, sensibilidade (em especial) e criatividade (essa última menos intensa).