Todo dezembro a família se reunia
na casa da vó, interior de Minas. Com minha prima a relação era mais próxima.
Mal nos víamos e eu já me colava a ela. Ficávamos pelo quintal ou pela rua, só
entrávamos em casa para comer e dormir. E tomar banho quando alguém se dava
conta de nos forçar.
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Minha prima tinha o corpo
pequeno, no entanto a coragem e a audácia eram grandes. Falava o que pensava,
tanto fosse pra uma criança ou adulto. Naquele dia saímos cedo. “Vamos ver onde
é a cachoeira que você encontrou na internet.” Ela me disse decidida enquanto
calçava um sapato fechado no lugar dos habituais chinelos de dedo. Fiz o mesmo.
Rabiscamos um mapa com base no
google earth e fomos seguindo. Caminhamos muito, o sol estava forte e a sede
começava a incomodar. Eu oscilava entre a vontade de tomar banho de cachoeira e
o receio de nos perdermos. Imagens do meu esqueleto esturricando no sol
povoavam minha cabeça. Mas minha prima estava convicta demais com o sucesso de
nossa jornada, eu preferi deixa-la assim feliz e não compartilhei as
possibilidades macabras que vez por outra invadiam minha tela mental.
Até que nos deparamos com uma
cerca de pau e três linhas de arame farpado.
- A gente já deve tá perto – ela
disse enquanto se esquivava pelos arames. Minhas pernas congelaram. Aquilo
era invasão de propriedade. - Vamos! Mal posso esperar pra me
refrescar.
- Eu num sei não, Pri. E se o
dono não gostar?
- Que? Que dono? Ah, o da cerca!
Ele não vai se incomodar, nem aqui deve estar.
- Eu não vou pular uma cerca,
invadir uma propriedade. E se tem cachorro? Capanga com arma, se chama a
polícia? Se eu for presa minha mãe morre de desgosto, ela odeia preso. Acho que
me mata!
- Ara, vai... – ela se virou e
seguiu farejando o caminho provável.
Fiquei um tempo parada, olhando-a
se afastar com passos decididos como se dona da terra. O brilho do Sol se
refletia nos seus cachos negros, por um momento quis ser como ela. Segurei no
arame, ergui a perna. Eu não era como ela. Eu era eu, e precisaria começar a
respeitar e aceitar essa diferença. Abaixei a perna de volta no lugar, soltei o
arame e voltei cabisbaixa para casa. A volta foi triste, a sede perdeu espaço
para o desanimo. Fiquei no quintal sozinha vendo as galinhas ciscarem durante toda
tarde. Uma hora tive impressão de ouvir a voz de minha prima na oficina do vô,
mas quando cheguei ele estava só.
- E você? Num qué nada?
Murmurei algo semelhante a um
“não” e saí.
Na manhã seguinte a primeira
coisa que vi foram os grandes olhos negros de minha prima. E ouvi sua voz,
demasiado grave para sua idade e gênero, me preguntando excitada:
- Preparada para um maravilhoso
banho de cachoeira? Então, se arruma que eu dei um jeito.
Me joguei da cama contagiada pelo
animo dela. Calcei minhas botas e segui correndo com ela pelo mesmo caminho do dia anterior. Achei que ela poderia ter encontrado um desvio. Mas, no lugar onde deveria ter
uma cerca, havia uma cerca arrebentada. Minha prima sorria triunfante e me explicou
absolutamente orgulhosa de sua ideia maravilhosa:
- Pronto. Agora você não precisa
invadir cerca, nem propriedade nenhuma. Basta seguir sua marcha!
- Você tá louca? Isso é crime!
Depredou a coisa de outro.
- Olha, eu só quero tomar banho
numa cachoeira. O cara cerca uma parte imensa da terra pra ele, tira toda a
mata enfia umas vacas vez por outra. Se ele quer estuprar essa porção da
natureza o problema é dele, eu só quero me refrescar. Quem é o louco criminoso?
Vou indo que esse calor tá me matando. Se você qué vim, vem. Senão num posso
fazer mais nada. Só digo que a cachu é perfeita!
Com meus conservadores 12 anos de idade
eu não tinha capacidade de tecer críticas à propriedade privada, à concentração de
rendas, exploração e apropriação de terras e recursos naturais. Eu tinha sido
doutrinada a respeitar a propriedade acima de tudo e que quem desrespeitasse
isso minimamente era ladrão, vagabundo que não valia nada, sem moral nem ética.
Mas, o que eu conseguia compreender perfeitamente naquele momento era que não
podia haver nenhum crime ou ameaça no fato de duas criança tomarem banho de
cachoeira. Além do mais, o dia anterior (como criança que respeitou o limite da
cerca) tinha sido terrivelmente chato. Enquanto me decidia podia ver minha
prima caminhando lentamente pelo pasto. Foi então que pensei no que ela havia
feito por mim. Ela rompeu uma cerca em respeito a minha limitação. Ela tinha
abusado dos valores morais dela para que eu não entrasse em crise com minha
consciência sozinha. De alguma forma ela se igualara a mim. Se eu teria que
lidar com o fato de cruzar um cerca, ela teria que conviver com a lembrança do
alicate em suas mãos rompendo a cerca. Não poderia deixa-la sozinha, isso havia
sido um pacto de cumplicidade. Não há crime maior do que se apropriar do bem
comum.
- Me espera! Eu também vou.
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