sábado, 30 de agosto de 2014

Cachoeira Proibida

Todo dezembro a família se reunia na casa da vó, interior de Minas. Com minha prima a relação era mais próxima. Mal nos víamos e eu já me colava a ela. Ficávamos pelo quintal ou pela rua, só entrávamos em casa para comer e dormir. E tomar banho quando alguém se dava conta de nos forçar.

Fonte: clica aqui.
Minha prima tinha o corpo pequeno, no entanto a coragem e a audácia eram grandes. Falava o que pensava, tanto fosse pra uma criança ou adulto. Naquele dia saímos cedo. “Vamos ver onde é a cachoeira que você encontrou na internet.” Ela me disse decidida enquanto calçava um sapato fechado no lugar dos habituais chinelos de dedo. Fiz o mesmo.
Rabiscamos um mapa com base no google earth e fomos seguindo. Caminhamos muito, o sol estava forte e a sede começava a incomodar. Eu oscilava entre a vontade de tomar banho de cachoeira e o receio de nos perdermos. Imagens do meu esqueleto esturricando no sol povoavam minha cabeça. Mas minha prima estava convicta demais com o sucesso de nossa jornada, eu preferi deixa-la assim feliz e não compartilhei as possibilidades macabras que vez por outra invadiam minha tela mental.
Até que nos deparamos com uma cerca de pau e três linhas de arame farpado.
- A gente já deve tá perto – ela disse enquanto se esquivava pelos arames. Minhas pernas congelaram. Aquilo era invasão de propriedade. - Vamos! Mal posso esperar pra me refrescar.
- Eu num sei não, Pri. E se o dono não gostar?
- Que? Que dono? Ah, o da cerca! Ele não vai se incomodar, nem aqui deve estar.
- Eu não vou pular uma cerca, invadir uma propriedade. E se tem cachorro? Capanga com arma, se chama a polícia? Se eu for presa minha mãe morre de desgosto, ela odeia preso. Acho que me mata!
- Ara, vai... – ela se virou e seguiu farejando o caminho provável.
Fiquei um tempo parada, olhando-a se afastar com passos decididos como se dona da terra. O brilho do Sol se refletia nos seus cachos negros, por um momento quis ser como ela. Segurei no arame, ergui a perna. Eu não era como ela. Eu era eu, e precisaria começar a respeitar e aceitar essa diferença. Abaixei a perna de volta no lugar, soltei o arame e voltei cabisbaixa para casa. A volta foi triste, a sede perdeu espaço para o desanimo. Fiquei no quintal sozinha vendo as galinhas ciscarem durante toda tarde. Uma hora tive impressão de ouvir a voz de minha prima na oficina do vô, mas quando cheguei ele estava só.
- E você? Num qué nada?
Murmurei algo semelhante a um “não” e saí.
Na manhã seguinte a primeira coisa que vi foram os grandes olhos negros de minha prima. E ouvi sua voz, demasiado grave para sua idade e gênero, me preguntando excitada:
- Preparada para um maravilhoso banho de cachoeira? Então, se arruma que eu dei um jeito.
Me joguei da cama contagiada pelo animo dela. Calcei minhas botas e segui correndo com ela pelo mesmo caminho do dia anterior. Achei que ela poderia ter encontrado um desvio. Mas, no lugar onde deveria ter uma cerca, havia uma cerca arrebentada. Minha prima sorria triunfante e me explicou absolutamente orgulhosa de sua ideia maravilhosa:
- Pronto. Agora você não precisa invadir cerca, nem propriedade nenhuma. Basta seguir sua marcha!
- Você tá louca? Isso é crime! Depredou a coisa de outro.
- Olha, eu só quero tomar banho numa cachoeira. O cara cerca uma parte imensa da terra pra ele, tira toda a mata enfia umas vacas vez por outra. Se ele quer estuprar essa porção da natureza o problema é dele, eu só quero me refrescar. Quem é o louco criminoso? Vou indo que esse calor tá me matando. Se você qué vim, vem. Senão num posso fazer mais nada. Só digo que a cachu é perfeita!
Com meus conservadores 12 anos de idade eu não tinha capacidade de tecer críticas à propriedade privada, à concentração de rendas, exploração e apropriação de terras e recursos naturais. Eu tinha sido doutrinada a respeitar a propriedade acima de tudo e que quem desrespeitasse isso minimamente era ladrão, vagabundo que não valia nada, sem moral nem ética. Mas, o que eu conseguia compreender perfeitamente naquele momento era que não podia haver nenhum crime ou ameaça no fato de duas criança tomarem banho de cachoeira. Além do mais, o dia anterior (como criança que respeitou o limite da cerca) tinha sido terrivelmente chato. Enquanto me decidia podia ver minha prima caminhando lentamente pelo pasto. Foi então que pensei no que ela havia feito por mim. Ela rompeu uma cerca em respeito a minha limitação. Ela tinha abusado dos valores morais dela para que eu não entrasse em crise com minha consciência sozinha. De alguma forma ela se igualara a mim. Se eu teria que lidar com o fato de cruzar um cerca, ela teria que conviver com a lembrança do alicate em suas mãos rompendo a cerca. Não poderia deixa-la sozinha, isso havia sido um pacto de cumplicidade. Não há crime maior do que se apropriar do bem comum.
- Me espera! Eu também vou.

Fonte: link aqui
 

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Ordem

Nasça, teste, obedeça, olhe.

Aprenda, pule, assista, ande.

Brinque, chore, escute, associe.

Imite, ria, aceite, suje.

Sinta, queira, procure, escolha.

Beba, cresça, beije, corra.

Mude, saia, dance, experimente.

Leia, abuse, descubra, brilhe.

Mande, conquiste, tenha, compre.

Faça, controle, case, dirija.

Engravide, fume, pareça, cuide.

Mostre, emagreça, trabalhe, invista.

Deleite, peça, aprecie, perdoe.

Esqueça, relaxe, aposente, deite.

Reze, apague, ensine, arrependa.

Desista, resista, expie, morra.

SEJA simplesmente SEJA



 
 

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Noiva do capital

Essa semana a empresa de transporte público provou que seu lema é "lucra bem para lucrar mais".


Curiosamente, os pontos de descida foram removidos. O ponto em que mais se descia gente, onde formava uma certa muvuca, foi o que mais causou estranhamento. De um dia para o outro o ponto não tava mais lá. "Vai descer" grita a galera do fundão. "Num tem mais ponto" responde o motorista mau humorado, emendando um "parece burro".

Simples assim. Que eu tenha conhecimento, dois pontos de descida foram subtraídos sem aviso, sem explicação. Deixando uma enorme distância a ser percorrida. Passageiro descendo não dá lucro, o lucro é com quem sobe. E afinal, conspiração de minha parte, a região do Guanabara vem investindo fortemente numa limpeza social. Afastando os pobres, tirando da vista. Muda a rodoviária, subtrai um ponto.

Na semana passada descobrimos que o ônibus das 12:50 agora é das 12:55. Ontem, chegamos na rodoviária e às 12:55 nada de ônibus (cassino - furg). Ia saindo um para o centro, perguntamos ao motorista "Deve estar chegando" e foi-se embora. Melhor pedir informação: "Num tem mais esse ônibus porque é férias". Simples assim, na quarta tem ônibus, na quinta não. Entramos no centro, digo o que chama Cassino, mas curiosamente vai para o centro. Ao longo do caminho sobe ao menos 13 estudantes que não sabiam, mas estavam de férias. Estudante já paga meia, para dar (muito) lucro precisa de estudante pra caramba. Com isso todos ficaram sem almoço...

Na volta decidimos nem arriscar esperando o furg-cassino. Fomos na faixa e pegamos o Cassino que aí sim, de fato vai para o cassino... Lo-ta-do. Respirei fundo, e me enfiei tentando achar algum espaço. E o motorista curiosamente segue parando nos pontos e apanhando gente. "Tá lotado motora". Começa a massa amontoada se manifestar. "Só mais cinco" responde o motorista para minha enorme surpresa. E não é que entra mais 5 mesmo? E dos grandes!

Só que é humanamente impossível e extremamente desagradável atravessar o ônibus para descer. E então, as pessoas que estão desconfortavelmente exprimidas na parte da frente se esforçam para alcançar a catraca, pasmem, pagam sua passagem, giram a catraca e descem pela frente, a cobradora grita "girei pra moça"! Essa é uma metodologia que não faz absolutamente nenhum sentido para mim!

E as cinco pessoas grandes que haviam entrado, logo (uns 5 pontos depois) vão descendo. "Eeeeei, mas vocês pagaram a passagem?" silêncio. Gritando para cobradora "Você cobrou desses cinco?" "Só recebi da menina e da senhora". Não me contive "Deixa descer, eles nem entraram no ônibus". Segui argumentando com 2 homens que pareciam concordar "não faz falta, essa empresa já lucra os tubos na nossa costa". Alguém pagou as passagens, possivelmente um cidadão de bem que acredita que a caridade é a salvação...

A cobradora pareceu ficar meio de cara comigo e dava indiretas dizendo que já tinha espaço no fundo, fica na frente porque quer, quer atrapalhar mesmo, resmungava. Não consegui ver o espaço atrás, apesar de ter ouvido bastante gente descer, e nem consegui identificar porque eu deveria passar pra trás. De todo modo eu fui, afinal queria ficar perto do meu companheiro. "Tem que ter mais ônibus, esse horário é sempre cheio, fica ruim até pra vocês, mto estresse" falei no tom mais simpático que consegui achar. "Num sei porque tá cheio, ontem mesmo veio vazio" respondeu mais calma.

Depois de ter passado o dia inteiro desejando que o presidente dessa joça fosse afetado de alguma forma. Imaginar o iate dele naufragando e deixando ele com frio e fome por uma semana. Depois de mentalizar todos os escritórios pegando fogo, graças a molotov. Depois de sentir vontade de tacar fogo naquele ônibus. Depois de desejar ardentemente que cada realzinho de lucro que entrasse no bolso algum tonto trouxesse um desagrado. Enfim, depois de mirar encima comecei a pensar porque razão os motoristas e cobradores fazem tanta questão de assegurar o lucro do patrão?

Imaginei o condicionamento mental que paira pela empresa. "Num dá pra por 'lotado', pensa naquelas pessoas no ponto, elas esperam pelo transporte para chegar nas suas casas." Ou ainda "tem muita gente ignorante e mal educada que pega o ônibus". Só pode de algum modo haver uma coação muito grande que faz com que o trabalhador se identifique mais com o patrão que com os usuários. E comecei a desejar algo muuuito mais interessante do que uma doença maligna num idiota qualquer. Comecei a imaginar os e as motoristas, e os e as cobradoras passando a adquirir consciência de classe. Imaginei eles/elas de alguma forma se apropriando de Marx, pensando de maneira crítica seu papel na sociedade.