sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Os biscoitos

Me lembro quando minha concepção de mundo começou a mudar radicalmente. Era fim de outubro, me lembro porque usava meu iPad novo, que tinha ganho no dia das crianças. Eu estava deitada na cama, minha mãe bateu e entrou. Continuei concentrada na minha TL. Ela sentou-se na cadeira, possivelmente olhando para mim, aquela sensação incomoda de ter alguém te olhando.
- O que você quer, mãe? - perguntei sem tirar os olhos do iPad.
- Bem, é meu domingo de folga, o dia está bom, acho que a gente pode dar uma volta pela orla.
Exercendo meu papel de adolescente, demonstrei meu desagrado com a ideia bufando alto.
- Vai, vamos lá, quero conversar com você. E deixa esse troço ai.
Me calcei e saímos. O sol brilhava e o vento soprava moderadamente de nordeste. Caminhamos um pouco pela Henrique Pancada e nos sentamos em um banco voltado para lagoa.
- Você sabe que sua avó se matou, né?
- Aham... Eu fui no enterro – falei com tom de “é óbvio que sim”.
- Pois é. – pausa – no dia do velório seu avô me falou que eles sempre tiveram uma vida tão dura – ela foi dar um sorriso, mas acabou saindo um soluço e lágrimas começaram a se formar em seus olhos. Eu começava a me sentir muito desconfortável, e preferia estar trancada no meu quarto, com a simplicidade de meu iPad, sem lágrimas nem sentimentos alheios.
Sem saber o que fazer nem o que dizer, fiquei esperando que ela continuasse.
Link da imagem
- Eu nunca soube! Quer dizer, eu sabia que não podíamos comprar muitas coisas e que eu era a única aluna da turma que não tinha sapato, mas eu nunca desconfiei que a nossa vida era dura. Minha mãe assava biscoitos com sorrisos, ela inventava mil e uma brincadeiras comigo, nós dançávamos, eu pescava com meu pai, todo fim de aula no verão pulava na lagoa com os amigos. Eu me sentia tão feliz, amada, completa. Nunca desconfiei. Sabe, Rita, quando me mudei para Porto não foi fácil. Trabalhar e fazer a faculdade, ter que escolher entre o almoço ou o aluguel. Realmente não é uma vida feliz, como aquela que minha mãe se esforçava para me dar apesar de suas preocupações internas tão cruéis. Meu pai disse que eles constantemente eram ameaçados de despejo. Que se não fossem as galinhas, a doação do leite da nossa vizinha Nini não teríamos o que comer. Os pescados de meu pai mal davam para manter a casa – ela ergueu seu olhar, mirando o horizonte – Eu só queria ter dito a ela que minha infância foi deliciosamente feliz.
- Mãe, isso não teria mudado as coisas. Não foi culpa sua!
- Rita, tenho te fornecido tudo para facilitar sua vida. Quero que seu ingresso na vida adulta seja sem nenhuma privação. Mas, desdaquele dia, que seu vô me falou aquilo, eu fiquei pensando, será que eu tenho te passado a felicidade, a despreocupação e o amor que eu vivenciei na minha infância? Eu nem te conheço. Fui tão ausente na tua infância, sem biscoitos contentes... – conseguimos rir da entonação de importância que ela deu aos biscoitos. Foi um riso triste, mas cheio de cumplicidade. Um riso meio desesperado que se transformou num choro soluçante. Juntas, abraçadas, choramos nossa tristeza, nossa desgraça, nossos pesares e a saudade de nós mesmas.
Link da foto
Não falamos muito depois desse momento. Nos acalmamos aos poucos, assistimos ao por do sol. E voltamos caminhando. Tentamos fingir que nada havia acontecido, eu seguia interpretando meu papel de adolescente entediada. Mas, todo domingo de folga dela assávamos biscoitos em dia frio, íamos ao Cassino em dias quentes, ou caminhávamos juntas, visitávamos meu avô.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

O direito de matar

Eis que me deparo com esse inquietante post:
Pensei, curti, descurti, naveguei um pouco, voltei e curti, aí eu descurti, aí eu passei um tempão pensando nisso, no que eu tinha sentido, o que eu realmente pensava.

Sou vegetariana, simpática ao veganismo. Mas, evito o máximo possível doutrinar os outros. As vezes não resisto de me expressar, esses dias a irmã de uma amiga disse (sem muita convicção) que tinha parado de comer carne, não resisti em expressar meu apoio "isso ai, bate aqui". De todo modo, essa é uma conversa que eu evito iniciar e me policio em participar. Pq é chato ter alguém palpitando em algo tão individual, como o que se come. É como o sermão do cigarro. A plantação de tabaco é uma monocultura, expulsa o camponês, altamente tóxica, usa e abusa de subemprego, adiciona-se um monte de veneno e causa um monte de doença, fede, a bituca fica pela rua etc. Mas, parar de fumar é uma decisão que só cabe ao fumante. Ainda que a monocultura de fumo afete a todas as espécies. Então, mesmo que se tenha o direito de fumar, existe a necessidade do debate sobre isso.

O que me incomodou no post, que não consegui curtir foi a comparação escravos/judeus/mulheres/animais. Faz pouco tempo que resolvi parar de comparar a humanidade a animais, sério eu tinha esse hábito de sempre que tinha alguma dúvida pegar um exemplo animal. Cuidado parental, por exemplo. Porque romanticamente eles parecem estar mais "conectados a sábia mãe natureza". E então, animais vivem livres, as aves são admiravelmente anarquistas, ai como os admiro. Só que de algum modo existe uma diferença crucial entre os animais em geral e animais humanos. A consciência de si (tenha sido isso uma evolução ou um erro), o uso da escrita, a busca eterna por conforto, sei lá, algo nos distingue. E mesmo que possamos aprender muito com os mais diversos e admiráveis animais, ainda é ofensivo chamar um ser humano de macaco. Comparar os grupos humanos historicamente inferiorizados com animais foi uma estratégia um tanto infeliz.

Outra ideia implícita que me impediu de curtir foi uma sugestão de linearidade e evolução da luta. Do tipo: conseguimos a libertação dos escravos, salvamos os judeus, e as mulheres tem uma delegacia especifica, agora no nosso mundo cor de rosa podemos nos ater as vaquinhas. Bem, dizer que superamos a escravidão é muito ingênuo, ainda existem relações de trabalho claramente escravagistas e outras não tão claras pelo simples fato de não haver uma prisão física, mas muita gente, em sua maioria negros, trabalham de manhã para comer a noite. Ainda existe perseguição religiosa e mulheres sofrem muita violência, não só física.

Agora, porque depois de descurtir eu tornava a curtir? Para mim é inegável que alguém se apegar ao seu hábito de comer carne a ponto de usar um argumento desse para não se questionar, soa como nos demais exemplos. Sou dono da fazenda e escravos são ótimos para mim, não quero me questionar, não quero mudar, só quero progredir e ser bem sucedido. Gosto de churrasco, e pensar no modo de produção, no impacto socioambiental e no sofrimento animal não me gera vantagens nem lucro, não quero mudar, fim de papo. Eu to bem assim e o resto que se lasque. Não tem uma semelhançazinha fascista pró satus quo, individualista e prepotente?