terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A vida e as coisas.

Quanto menos assisto televisão menos capaz de assisti-la me torno. E isso seria um motivo de orgulho se conseguisse transpor os momentos sociais em que todos olham para TV. Não consigo. Então fico no meio das pessoas tentando me passar por torta frita. O bom do locus social que me encontro é que o sofá é confortável, a sala tem ar condicionado, a refeição é farta, o ruim é que parece que nada do que penso e sinto faz sentido. Muito embora cada vez me torno mais convicta da  minha coerência.

Por alguma razão a rede globo resolveu pregar acerca da depredação dos ônibus. Seria tudo bem se a matéria do fantástico não começasse com dois adolescentes assassinados por policiais durante um baile funk (possivelmente único momento de lazer de jovens da periferia). E então o repórter me diz em tom de horror "jovens queimaram um ônibus, porque acreditam que policiais tenham matado dois traficantes". Bem, que tenham sido assassinados por policiais, isso é uma suspeita, mas que eram traficantes não resta dúvida. O julgamento já foi feito, várias vezes embora nenhum juiz tenha participado. Foram julgados e condenados a pena de morte executada de imediato sem advogado de defesa, pelos policiais. E novamente julgados pelo repórter.

Mas, ao que parece esse não é o problema! O problema, e o drama todo reside no ônibus queimado. Sim, caros amigos, o ônibus. Essa é a vítima principal da ocorrência, o foco de nossa atenção e compaixão, o motivo de nossa revolta, nós membros da classe média.

Ainda estou um tanto incomodada com essa reportagem, e olha que faz semanas. Imaginem que entrevistaram uma funcionária da empresa de ônibus. E ela disse o valor do ônibus. Pois, uma informação séria tem que ter números. E eu não me lembro o valor porque estava pensando "Por que o senhor atirou em mim?". Imagens de horror de um ônibus vazio vagando pela noite eram exibidas, enquanto o motorista narrava o medo que sente de ser abordado. Outra voz disse que estava num ônibus que foi queimado "Eles mandaram a gente sair - desce, desce". Outro número foi exibido, que também não tenho certeza, mas acredito que era algo como: desde o início do ano 45 ônibus foram queimados. Nessa hora meu estomago embrulhou e calculei que seriam 90 assassinados nas periferias da cidade, 3 salas de aula inteiras. Se extrapolarmos o caso narrado para os demais.

Desses jovens nenhum tem nome. Nenhum tem mãe sendo entrevistada. Nenhum tem voz. Possivelmente não saberíamos de suas mortes, não haveria notícia se não fosse pelo pobre e querido ônibus queimado. A preocupação é com o patrimônio. O ônibus de 3 reais a passagem. A coisa que atropela a vida até no lúdico, na narrativa.

A colega do meu lado, confortavelmente deitada em seu sofá, fica assustada. "nossa, que absurdo, depois reclamam do preço da passagem". Meu coração bate forte, como falar sem gritar sacudindo-a pelos braços? "dois adolescentes foram assassinados" e vem a resposta 'eram traficantes' como se isso justificasse. Como se fosse legítimo assassinar todo e qualquer suspeito de tráfico que more na periferia. O coração continua batendo forte, meu inconformismo dificulta meu raciocínio, sinto o namorado me cutucar, de novo, cada vez mais forte. Devo me calar? Não posso, parece que seria trair a mim mesma, parece o mínimo que posso fazer por toda injustiça é me posicionar numa conversa informal. Na dúvida me permito um último e fugaz argumento, digo então rapidamente: "esse não é o papel da polícia". E então volto a posição torta frita, ignorando todo o resto, olhos parados fingindo ver tv, por dentro um turbilhão.

Estou condicionada, depois de 28 anos adestrada, a colocar o individual acima do coletivo. - Eu não mereço ser estuprada! E as outras? - Me incomoda sobremaneira o cutucão, esqueço dos jovens na periferia. Nas conversas individuais com o namorado sempre concordamos com o absurdo da injusta luta de classe, mas num momento como esse ele me cutuca, me oprime, me abandona, controla o que posso ou não dizer? Não confia que eu consigo conversar sem destruir vínculos familiares? Eu consigo? E de modo covarde, que dissesse "bem tenho uma opinião sobre isso, mas o mais adequado seria cada um guardar sua opinião para si", ai então também seria julgado.

Característico de mim mesma rumino, rumino, e rumino sobre isso. Controle. Não quero que ele me controle, mas isso não seria controla-lo? Proibi-lo de me cutucar: uma advertência agora, dá próxima é suspensão. Não. Só posso controlar a mim mesma, o que sinto e faço com o que me afeta. Não existe a menor possibilidade de controlar ao próximo, não quero isso, sou incapaz disso. Gostaria de não receber um discreto 'fica quieta' de quem gostaria de receber explicito apoio. Mas, a verdade é que acima de tudo não quero que ninguém me obedeça, que seja menos livre só para me satisfazer. Só cabe a mim decidir o que fazer com as próximas cutucadas. E decido que irei ignorar, não é bem um 'foda-se' é mais como um 'puxa, seja lá o que eu quiser dizer preciso moderar o tom para que ninguém se ofenda', e então seguir dizendo. Afinal, foi uma luta muito grande para que as mulheres tivessem voz, e me calar seria uma verdadeira traição.