domingo, 10 de junho de 2018

Não precisamos de mais polícia, precisamos de menos privilégios

Numa bela noite fresquinha, voltava eu de uma sessão de terapia, bastante reflexiva. Tinha me programado para "mandar um áudio" para uma amigona, com quem quero muito compartilhar os acontecimentos da vida. Segurei o celular na mão, mas precisava elaborar a fala ou pelo menos diminuir a vazão de pensamentos, fui fazendo isso a medida em que pedalava. Absorta em pensamentos. Às 19 horas de uma quinta feira. Quando sem muita explicação, um jovem muda de faixa e bate no meu guidão. Eu "volto" meus pensamentos todinhos pro meu corpo. A adrenalina, a confusão. "Porra!!! Nem pra ver se eu estava bem!!!". Falei tentando impor alguma moral, meio constrangida por ter quase caído e sentido dor na mão e na perna mesmo sem nenhum arranhãozinho.

E como você pode imaginar... Meu celular foi pelos ares, eu não me dei conta, o oportunista jovenzinho levou sua caça... Bloqueamos o IMEI e provavelmente agora, o espelho negro com fotos do bebê deve estar sendo vendido às peças...

O estranho é pensar que essa é a primeira vez que me acontece!!!

Celulares custão em torno de R$500,00... É mais que a renda mensal per capta de aproximadamente 8 mil pessoas em Ilhabela*

Vivemos um abismo social. Temos paisagens distintas e eu ando por elas. Eu entro nas vielas, busco famílias sem endereços, muitas e muitas pessoas no mesmo número. Eu pedalo em frente à enormes mansões vazias, sempre vazias. Não tem a menor chance de achar que isso é normal ou natural. Um bebezinho, que acaba de chegar nesse mundão véio, já chega condenado pelo acaso.

As atividades de esporte e "cultura" não cobrem toda demanda e muitas das atividades ofertadas não dialogam com os interesses e cultura. A qualidade da educação é bem questionável, afinal o gestores não utilizam da mesma. E mesmo que usassem, é uma educação que prende, que castra, que reproduz. Não temos atividades de convívio baseada na cooperação, na dialogicidade, na democraticidade... Me dizem "pois bem, mas enquanto isso não acontece, precisamos de uma medida mais urgente! Mais policiamento na ciclovia!".

Temos que ter muito cuidado com isso, muito mesmo. Essa receita de "vigiar e punir" NUNCA funcionou.

Quero fazer um paralelo com a UPP. Nasceu com a ideia de pacificar para que depois o Estado chegasse... Preparar o terreno para inserção de escolas e UBS. Pois bem, pelo elevado índice de homicídios brutais (Onde está o Amarildo?) podemos concluir que não foi uma medida exatamente eficaz. Há uma guerra. Uma guerra ideológica que ocorre em nossas pequenas relações. Existe uma força de extermínio dos pobres, mestiços, uma força histórica. Que se manifesta quando alguém discrimina os imigrantes do norte e nordeste, quando se expulsa pessoas que não moram em casas, quando se usa o discurso de combate às drogas para legitimar ações discriminatórias!!! Isso acontece aqui, na nossa linda Ilhabela e precisamos estar atentas, para não endossar essas ações.

Você consegue imaginar o rosto do jovem rapaz que me abordou?

Ele não era branco. Ele era exatamente o estereótipo do "bandido". O que me faz concluir que se o rapaz da periferia com "cara de bandido" tiver o mesmo conforto que o boyzinho, a probabilidade de eu ser furtada novamente diminui, e diminui muito.

Mas, quem tem o poder de tomar essa decisão é todinho privilégio. Faz cinco refeições por dia, nas quais se quer precisa lavar a louça, toma um banho quente num chuveirão, dorme na caminha quente e cheirosa, mora em uma casa agradável, arejada e iluminada, planeja a próxima viagem de lazer, e sonha com as inúmeras boas possibilidades de futuro para cria. Poucas pessoas, muito poucas estão vivendo isso agora. E são elas que decidem que medida tomar para impactar a vida da esmagadora parcela que sobrevive como pode.

Eu não quero que haja mais privilégios, quero que todos e todas possam usufruir da vida, sem precisar esperar o paraíso.

*https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/ilhabela/panorama