sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Pela valorização da diversidade etnico-cultural

Por pura ingenuidade, ou total ignorância mesmo, não esperava encontrar tamanho bairrismo, beirando a xenofobia nessa viva ilha. A pergunta "da onde você é?" pode ser ouvida mais de cinco vezes ao dia. A minha vontade é responder "do planeta terra". Quando em uma conversa é dito que "fulana é caiçara" eu ainda não sei bem o que fazer com essa informação. Eu deveria automaticamente gostar mais de fulana? Valoriza-la? Respeita-la? Ao que parece existem graus de caiçarismo, se é a quarta geração de caiçara estabelece-se uma aura de dignidade, como se tratasse de uma família de sábios xamãs. Esse esquisito julgamento de valores é fortemente alimentado em especial por quem veio de fora, ah mas na década de 60, ou setenta, e se apropria da ilha como se fosse sua. Então temos uma hierarquia de valores baseada em anos (ou gerações) de ilha. Talvez se os escravos do tempo da abolição soubessem que seria assim não teriam se mandado daqui, diminuindo na metade a população da ilha de 1888*. Imagina, ser caiçara desde 1888?! Se bem que, nesse ufanismo estrambólico reside uma desconcertante contradição, a condição de vida desses caiçaras não é em nada melhor do que a dos migrantes paulistanos.

São os migrantes baianos, mineiros e pernambucanos os principais alvo de preconceito (quando o assunto é bairrismo, porque preconceito é algo que abunda por aqui sendo difícil elencar o alvo principal). É visto como se fossem pessoas desprovidas de caráter que decidem se apropriar da riqueza da ilha. Como se sua vinda pra cá não fosse o resultado natural do investimento estatal histórico centrado em sp. Como se a condição de vida nos outros estados fosse maravilhosa. E como se esse modelo de desenvolvimento não forçasse a migração maciça de mão de obra barata ao degradar as regiões fornecedoras de matéria-prima. Todos esses fatores e outros que ainda ignoro são postos de lado na defesa raivosa de privilégios. Oxalá que o investimento (tardio) estatal dos últimos anos seja capaz de reverter essa situação, e as milhares de cisternas financiadas driblem a seca e sejam uma alternativa à migração forçada.
E oxalá que a cultura desses migrantes possa ser apreciada, admirada e compartilhada ao invés de seguir oprimida e escondida enquanto se realiza inúmeros eventos dos mais diversos temas para agrado do poder hegemônico.

* Uma viagem pela história do arquipélago de Ilhabela, Nivaldo Simões, 2005.

domingo, 4 de outubro de 2015

O benzedor

As histórias e mitos da ilha mexem comigo. Tanto quanto suas belas paisagens. Me pego imaginando o triste fim da rica feiticeira. Ou as aventuras dos piratas. As secretas conspirações dos escravos, as revoltas e fugas não contadas, mas que certamente aconteceram. As vivências dos índios. E nesse criar e compor me abandono por horas. Mas uma figura me instigou de modo especial. 

Foi uma colega da secretaria que o mencionou pela primeira vez. Ela iria procurá-lo para curar sua garganta. O João, benzedor. Talvez por gostar ou pelo menos simpatizar comigo e minha companheira de aventuras nos deu as dicas. Falou o endereço, "ele não gosta muito de benzer e por vezes diz que não faz mais isso, mas ele gosta muito de leite em pó. Leva uma lata como agradecimento e incentivo." 

Fiquei empolgadíssima e realmente feliz por ainda existirem pessoas que benzem! Uma arte que julgava perdida. Só que essa felicidade genuína, lhe asseguro, não me motivou a procurá-lo. Não por não acreditar na reza de seu João. Acredito, respeito e admiro. Mas porque me julgo bem de saúde, e me sentiria um pouco mal em explorá-lo para me sentir "ainda melhor".  Muitas pessoas me falaram dele em momentos diversos. "Me disse que estava com mau olhado, para tomar banho com (não me lembro o que) para limpar". E comecei a desejar conhecer esse homem. Eu queria que ele pelo menos me visse para dizer caso tenha algo errado comigo.

O CRAS daqui está se estruturando e organizando com esse tanto de gente nova que foi chamada pelo concurso. Por isso as atividades de grupo ainda estão sendo atenciosamente planejadas, e como orientadora social, eu e minha amiga recebemos a função de fazer cadastros (os famosos - para nós - Cad). Numa lista de mais de 400 endereços lá fui eu, buscar uma pessoa numa agradável rua sem saída, entre uma igreja e uma escola, tranquila como haveria de ser. Paro para comer algumas pitangas que saem de uma cerca enquanto ouço o som do que parece ser um ancinho de metal coçando o cimento. Sigo pela rua e logo encontro um senhor que parece meditar enquanto varre as folhas caídas na rua. Admiro um pouco, observando seu pequeno bolo de folhas crescer. Ele nota minha presença e continua, com calma como se tivesse tempo pra tudo. Me fazendo lembrar da história que os budistas adoram contar sobre:

"um homem que ia a galope num cavalo. Segundo a história, o cavalo corria tanto que parecia que o homem ia a um lugar muito importante. Uma pessoa que estava à beira da estrada grita para o homem: "Aonde você vai?". O homem que montava no veloz corcel responde: "Não sei, pergunte ao cavalo!". E se as histórias zen não bastarem para nos lembrar da futilidade dos nossos hábitos, os filósofos não nos deixam dúvidas. Henry David Thoureau afirmou: "O homem cujo cavalo trota um quilometro por minuto não leva a mensagem mais importante."*

Montada em meu cavalo metafórico penso que todos que trabalham devem ter pressa e me obrigo a interromper o momento. Confirmo que ele é quem procuro, explico quem sou e o que vim fazer. Ele me convida para entrar. Me sinto atravessando um portal. O terreno não muito grande é, provavelmente, o mais fértil e produtivo da ilha. Tem dezenas de árvores frutíferas e incontáveis galinhas ciscando felizes entre elas. Preencho o cad, desejando que ele esteja realizando uma analise profundo de minha aura para me dar um diagnóstico. Ele responde as perguntas, fala do passado, do presente e do futuro. Dia 05 (amanhã) é meu aniversário. Faço oitenta e um anos. 

Fico num conflito interno sobre o desejo de ser benzida e o quão inapropriado seria um pedido desse. Torço intimamente para alguma proposta dele, mas talvez esteja pensando no mesmo. Digo apenas ao me despedir que ouço muito falar dele, sempre muito bem, e foi uma enorme honra ter-lhe conhecido. Saindo reparo nas latas com mudas frutíferas, esperando calmamente para serem plantadas de modo que possam então desenvolver todo seu esplendor em rica generosidade. Nesse momento encontro minha meta de 2016. 

Em 2014 percebi o tanto de planos que aspiro. Eram tantos, mas tantos, que estavam todos entalados! Nesse lugar estranho, pouco acessível e cheio de armadilhas, que fica entre o planejar e o fazer.  Angustiada com o fato de querer ser vegana, praticar yoga, meditar, acabar com o sedentarismo, ler, limpar a casa, plantar, escrever, pintar e infinitas coisas que desejo fazer de maneira habitual, decidi que implantaria um hábito por ano. O que me parecia mais urgente e foi portanto elegido como meta 2015 foi caminhar/ me exercitar pelo menos 20 minutos por dia, os fins de semana podem ser sem regras. Só que sabe aquele papo de o que pede consegue e o universo conspirando a seu favor e tals? Pois então, o fato de viver numa cidade com uma orla maravilhosa, somada ao emprego (aparentemente confundido com agente comunitário de saúde) me fez ter sucesso absoluto em acabar com o sedentarismo! E quando começava a pensar na contribuição que 2016 poderia me dar me brilham as lindas mudas do seu João. Uma árvore frutífera por mês!!! Eis o que farei a partir de 2016. 

* esse livro de Mary Paterson chama-se Os Monges e Eu.