quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

A família, habitação e drogas.

Foram momentos intensos esses de capacitação profissional! Adoro assistir alguns conceitos firmemente consolidados se encher de dúvidas.
Em um dos dias o tema foi Família...

Inicialmente cada um deveria escrever a palavra que lhe viesse a mente quando se falava em família. Pensei conflito. Mas ouvindo os colegas comentando amor, amizade, proteção, preferi mudar para convivência. Comentei com uma amiga que por sorte me disse: eu tinha pensado em ilusão, mas preferi escrever aprendizado. E assim não destoamos muito da opinião pública.
E então a outra etapa foi fazer um desenho do que nos representa a família, e explicar para todos o porque. Lá estava eu, com meus quatro meses de gestação, olhando uma folha em branco, lembrando de meus pais e tentando identificar algum sentimento passível de ser desenhado. O tempo correndo. "Fiz uma casa por ser o espaço onde se materializa a relação familiar", que ficou meio perdida em meio a tantos corações e elos de corrente. Puxa, já estava me sentindo uma bandida sem coração, sendo tão crítica de uma instituição tão indiscutivelmente amada.
Só que dentro de um CRAS, as famílias atendidas são bastante diferentes de um comercial de margarina. E esse era justamente o pulo do gato. Nosso querido facilitador nos divide em subgrupos, entrega cartolinas e diz, em uma metade desenha a família ideal, na outra a real. O grupo começou discutindo como representar o amor, respeito, confiança, seria um coração com luzinha? E então nossa mestre Yoda, lançou o cutucão: e vocês acham que não precisa de papai, mamãe e filhinho? Se não fosse ela eu provavelmente pensaria "lógico que não" e fim de papo. Uma do grupo defendeu firmemente que não. Dizia ela, dos casos de filhos que são bem tratados por pais viúvos. E perguntei meio assustada: e isso é o ideal?! Que a mãe morra? Passaram a dizer das crianças que são adotadas por gays amorosos. E novamente é esse o ideal? A criança ser afastada dos pais por algum fator bastante negativo para depois entrar num lar harmonioso? Mas então, nesse caso estaria eu defendendo a família tradicional brasileira? Talvez fosse melhor ter ficado nos termos abstratos e indiscutíveis, a família ideal é aquela que fornece proteção, amor, carinho, respeito, diálogo. A Yoda interveio novamente: não digo de gênero, mas com dois adultos fica muito mais leve dividir as responsabilidades e somatizar as alegrias. A outra colega, que não contou com auxilio presencial do companheiro na criação de seus dois filhos confirmou que é muito difícil formar a família sozinha, ter que organizar a casa, cuidar da saúde, alimentação, educação, tomar todas as decisões, etc. Então desenhamos duas silhuetas grandes e uma pequena, envolta por um coração com aberturas para o mundo exterior, com setas de acesso à unidades de saúde, lazer, educação, cultura, esporte, ambiente saudável. Do lado real ficou uma mulher com diversos filhos, sendo uma gestante, casinha de palafita no alto do morro, sem acesso a transporte, educação, saúde, com lixo e esgoto nas ruas, e violência verbal. Um pouco estereotipada, seria como a soma das vulnerabilidades das famílias atendidas.

Acontece que a capacitação continuou e os temas foram mudando e numa certa manhã falou-se de adolescência. E do fato de o Brasil ser um dos países com maior índice de homicídio entre meninos. Isso sendo permitido e incentivado pela guerra contra o tráfico. Aliás essa é a principal ocupação dos casos de trabalho infantil. Isso me deixou incomodada. Não é uma informação inédita, mas sempre incomoda.

Logo em seguida, não sei bem como entramos no tema da habitação. Na Ilhabela os aluguéis são exorbitantes e me revolto toda vez que estou nos cafundéu de uma viela escura e fedorenta, preenchendo um cadastro e a pessoa diz que paga 500/700 reais de aluguel. Isso é quase um salário mínimo!!!

E então me veio uma conclusão óbvia na cabeça.
Seria melhor legalizar e regulamentar a venda de drogas e proibir a cobrança de aluguel para moradia.
Enquanto isso seguiremos enxugando gelo...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Querer ou não querer o Parque Natural Municipal das Tartarugas?

Eis a pergunta que eu trouxe para casa nessa chuvosa segunda-feira! A convite da amiga e sentindo o peso da responsabilidade da oceanografia e gerenciamento costeiro que pesam sobre meus ombros, tive que comparecer na "devolutiva da consulta pública".

Pegar o bonde andando apesar de incomodo pode ser bem positivo. Devido ao fato de que não estou com o lado tomado. O encontro começou com quase uma hora de atraso, teve uma explicação sucinta das vantagens e maravilhas da criação do parque por parte do secretário e passou para a resposta às questões levantadas na audiência, por um técnico ambiental. Nesse momento não conseguia entender bem porque haveria uma ameaça a cultura tradicional, em especial a pesca. Se fosse só esse o problema, o secretário se adiantou em deixar claro que existe a possibilidade de licenças exclusivas. E a gestão do parque deve ter 50% de seus membros da comunidade civil. Houve a interrupção diversas vezes de um senhor bem exaltado e falador, foi diminuído a "tumultuador, interessado em votos". E eu confusa, sem saber se concordava, afinal o bate-boca atrasa a conversa, torna pesado e cansativo o debate, num leva a nada, vira uma disputa de egos.

Outro ponto defendido na devolutiva foi o da participação, que para o secretário se resume a audiência pública (ou apresentação do estudo técnico e propaganda da proposta) e essa devolutiva como auge, por não ser obrigatória!

Bem, um parque é uma Unidade de Proteção Integral, o que é diferente de uma Área de Uso Sustentável, como uma RESEX (Reserva Extrativista). Pensei que isso poderia ser uma boa resolução para o conflito apresentado, afinal permite o uso dos recursos e é gerida pela comunidade. Fui conversar com o jovem caiçara, primeiro da platéia a ter a palavra. Os argumentos brevemente exposto por ele foram:

-> Já temos leis, em especial o Plano de Gerenciamento Costeiro que se encarregam do manejo da pesca e uso da área marinha. Os quais se adequadamente aplicados dão conta de manutenção da vida marinha, sem a geração de gasto público desnecessário.
->Nessa região não tem exploração ou ameaça às espécies em risco de extinção. E nem há importância ecológica para o ciclo de vida das tartarugas.
->Toda energia e dinheiro gasto nesse plano deveriam ter sido aplicados no tratamento de esgoto há muito tempo atrás, se houvesse uma real preocupação com a vida marinha.
-> Não há estudos que comprovem impactos positivos na criação de unidades de conservação, tanto do ponto de vista ambiental quanto social.

O que me assustou na reunião foi a intensa polarização nós contra eles, pró e contra o parque. Isso torna superficial a discussão, entra num embate de vaidades pela razão e esvazia a discussão. Continuo sem um lado, e penso que algumas questões devem ser priorizadas no tema:

Porque criar um parque?
        Se for pelas tartarugas, esse lugar é de relevância ecológica no seu desenvolvimento?
                                              o parque vai realmente protegê-las, a pesca artesanal é uma ameaça real,                                               maior que o porto, o esgoto, embarcações?



sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Pela valorização da diversidade etnico-cultural

Por pura ingenuidade, ou total ignorância mesmo, não esperava encontrar tamanho bairrismo, beirando a xenofobia nessa viva ilha. A pergunta "da onde você é?" pode ser ouvida mais de cinco vezes ao dia. A minha vontade é responder "do planeta terra". Quando em uma conversa é dito que "fulana é caiçara" eu ainda não sei bem o que fazer com essa informação. Eu deveria automaticamente gostar mais de fulana? Valoriza-la? Respeita-la? Ao que parece existem graus de caiçarismo, se é a quarta geração de caiçara estabelece-se uma aura de dignidade, como se tratasse de uma família de sábios xamãs. Esse esquisito julgamento de valores é fortemente alimentado em especial por quem veio de fora, ah mas na década de 60, ou setenta, e se apropria da ilha como se fosse sua. Então temos uma hierarquia de valores baseada em anos (ou gerações) de ilha. Talvez se os escravos do tempo da abolição soubessem que seria assim não teriam se mandado daqui, diminuindo na metade a população da ilha de 1888*. Imagina, ser caiçara desde 1888?! Se bem que, nesse ufanismo estrambólico reside uma desconcertante contradição, a condição de vida desses caiçaras não é em nada melhor do que a dos migrantes paulistanos.

São os migrantes baianos, mineiros e pernambucanos os principais alvo de preconceito (quando o assunto é bairrismo, porque preconceito é algo que abunda por aqui sendo difícil elencar o alvo principal). É visto como se fossem pessoas desprovidas de caráter que decidem se apropriar da riqueza da ilha. Como se sua vinda pra cá não fosse o resultado natural do investimento estatal histórico centrado em sp. Como se a condição de vida nos outros estados fosse maravilhosa. E como se esse modelo de desenvolvimento não forçasse a migração maciça de mão de obra barata ao degradar as regiões fornecedoras de matéria-prima. Todos esses fatores e outros que ainda ignoro são postos de lado na defesa raivosa de privilégios. Oxalá que o investimento (tardio) estatal dos últimos anos seja capaz de reverter essa situação, e as milhares de cisternas financiadas driblem a seca e sejam uma alternativa à migração forçada.
E oxalá que a cultura desses migrantes possa ser apreciada, admirada e compartilhada ao invés de seguir oprimida e escondida enquanto se realiza inúmeros eventos dos mais diversos temas para agrado do poder hegemônico.

* Uma viagem pela história do arquipélago de Ilhabela, Nivaldo Simões, 2005.

domingo, 4 de outubro de 2015

O benzedor

As histórias e mitos da ilha mexem comigo. Tanto quanto suas belas paisagens. Me pego imaginando o triste fim da rica feiticeira. Ou as aventuras dos piratas. As secretas conspirações dos escravos, as revoltas e fugas não contadas, mas que certamente aconteceram. As vivências dos índios. E nesse criar e compor me abandono por horas. Mas uma figura me instigou de modo especial. 

Foi uma colega da secretaria que o mencionou pela primeira vez. Ela iria procurá-lo para curar sua garganta. O João, benzedor. Talvez por gostar ou pelo menos simpatizar comigo e minha companheira de aventuras nos deu as dicas. Falou o endereço, "ele não gosta muito de benzer e por vezes diz que não faz mais isso, mas ele gosta muito de leite em pó. Leva uma lata como agradecimento e incentivo." 

Fiquei empolgadíssima e realmente feliz por ainda existirem pessoas que benzem! Uma arte que julgava perdida. Só que essa felicidade genuína, lhe asseguro, não me motivou a procurá-lo. Não por não acreditar na reza de seu João. Acredito, respeito e admiro. Mas porque me julgo bem de saúde, e me sentiria um pouco mal em explorá-lo para me sentir "ainda melhor".  Muitas pessoas me falaram dele em momentos diversos. "Me disse que estava com mau olhado, para tomar banho com (não me lembro o que) para limpar". E comecei a desejar conhecer esse homem. Eu queria que ele pelo menos me visse para dizer caso tenha algo errado comigo.

O CRAS daqui está se estruturando e organizando com esse tanto de gente nova que foi chamada pelo concurso. Por isso as atividades de grupo ainda estão sendo atenciosamente planejadas, e como orientadora social, eu e minha amiga recebemos a função de fazer cadastros (os famosos - para nós - Cad). Numa lista de mais de 400 endereços lá fui eu, buscar uma pessoa numa agradável rua sem saída, entre uma igreja e uma escola, tranquila como haveria de ser. Paro para comer algumas pitangas que saem de uma cerca enquanto ouço o som do que parece ser um ancinho de metal coçando o cimento. Sigo pela rua e logo encontro um senhor que parece meditar enquanto varre as folhas caídas na rua. Admiro um pouco, observando seu pequeno bolo de folhas crescer. Ele nota minha presença e continua, com calma como se tivesse tempo pra tudo. Me fazendo lembrar da história que os budistas adoram contar sobre:

"um homem que ia a galope num cavalo. Segundo a história, o cavalo corria tanto que parecia que o homem ia a um lugar muito importante. Uma pessoa que estava à beira da estrada grita para o homem: "Aonde você vai?". O homem que montava no veloz corcel responde: "Não sei, pergunte ao cavalo!". E se as histórias zen não bastarem para nos lembrar da futilidade dos nossos hábitos, os filósofos não nos deixam dúvidas. Henry David Thoureau afirmou: "O homem cujo cavalo trota um quilometro por minuto não leva a mensagem mais importante."*

Montada em meu cavalo metafórico penso que todos que trabalham devem ter pressa e me obrigo a interromper o momento. Confirmo que ele é quem procuro, explico quem sou e o que vim fazer. Ele me convida para entrar. Me sinto atravessando um portal. O terreno não muito grande é, provavelmente, o mais fértil e produtivo da ilha. Tem dezenas de árvores frutíferas e incontáveis galinhas ciscando felizes entre elas. Preencho o cad, desejando que ele esteja realizando uma analise profundo de minha aura para me dar um diagnóstico. Ele responde as perguntas, fala do passado, do presente e do futuro. Dia 05 (amanhã) é meu aniversário. Faço oitenta e um anos. 

Fico num conflito interno sobre o desejo de ser benzida e o quão inapropriado seria um pedido desse. Torço intimamente para alguma proposta dele, mas talvez esteja pensando no mesmo. Digo apenas ao me despedir que ouço muito falar dele, sempre muito bem, e foi uma enorme honra ter-lhe conhecido. Saindo reparo nas latas com mudas frutíferas, esperando calmamente para serem plantadas de modo que possam então desenvolver todo seu esplendor em rica generosidade. Nesse momento encontro minha meta de 2016. 

Em 2014 percebi o tanto de planos que aspiro. Eram tantos, mas tantos, que estavam todos entalados! Nesse lugar estranho, pouco acessível e cheio de armadilhas, que fica entre o planejar e o fazer.  Angustiada com o fato de querer ser vegana, praticar yoga, meditar, acabar com o sedentarismo, ler, limpar a casa, plantar, escrever, pintar e infinitas coisas que desejo fazer de maneira habitual, decidi que implantaria um hábito por ano. O que me parecia mais urgente e foi portanto elegido como meta 2015 foi caminhar/ me exercitar pelo menos 20 minutos por dia, os fins de semana podem ser sem regras. Só que sabe aquele papo de o que pede consegue e o universo conspirando a seu favor e tals? Pois então, o fato de viver numa cidade com uma orla maravilhosa, somada ao emprego (aparentemente confundido com agente comunitário de saúde) me fez ter sucesso absoluto em acabar com o sedentarismo! E quando começava a pensar na contribuição que 2016 poderia me dar me brilham as lindas mudas do seu João. Uma árvore frutífera por mês!!! Eis o que farei a partir de 2016. 

* esse livro de Mary Paterson chama-se Os Monges e Eu.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Ilhabela

Ainda lido com a ideia de não estar no Cassino. No Rio Grande do Sul. Me assusto com essa velocidade paulista. É fácil sentir a intensidade do capitalismo, ele permeia as relações humanas, fica no ar que os valores são outros. A exclusão da diversidade, o ter que se agiganta perto do ser, como se isso fosse óbvio. A veja sendo considerada fonte de informação o.O
E ainda tem a incomoda e desconfortável pergunta: Dá onde você é?
Já não sei responder. Sei que nasci em São Paulo. Vivi mais tempo em Araçoiaba da Serra/Sorocaba. Mas, me formei e me consolidei em Rio Grande! Da onde sou?

Com 3 meses de ilha começo a identificar o charme do lugar. É uma associação engajada na causa animal aqui, um bar alternativo e com história ali*, uma ONG forte e consolidada voltada pra cultura popular, um discurso sóbrio da assistente do judiciário na conferencia da assist. social, um evento com pegada anárquica que domina a orla a cada 45 dias, e em especial, uma equipe técnica em assistência social afim de fazer coro à participação popular.
E desse modo, conhecendo ilhabelenses caroneiros de opinião afim, vou me tornando um pouco mais ilhabelense também. Me incluindo nesse espaço tão visado. Me identificando no brilho dos olhos dos que sonham, e que vivem ideologias e vislumbres de uma sociedade justa, livre, fraterna.



*o Casa Aberta no Perequê funciona nas estruturas da 13ª casa da ilha, lugar que funcionou como casa de parto, trazendo à vida muito dos caiçaras!

quarta-feira, 22 de abril de 2015

A gaiola de ouro

- Temos liberdades diferentes. Sua selvageria agora é prisão. Você diz que busca liberdade, mas é incapaz de ver que talvez seja eu mais livre que você. Enquanto geme por igualdade e justiça se priva de usufruir privilégios. Deixe aos que precisam a luta. Quando você toma uma voz ela se cala. A gaiola de ouro prende os idealistas fora do conforto. A brilhante gaiola da liberdade fabricada. Essa em que você orgulhosamente se recusa a entrar. Na corrente dos ideais humanistas, na busca obcecada pela verdade. Eu, livre do conceito de bem comum aproveito os serviços e favores, os prazeres e recursos. Livre que sou para comprar. Comprar coisas e pessoas, paisagens e confortos, compro e consumo, e pago a vista ou parcelado. E como, degusto e saboreio vidas sorrindo, pois sou livre da compaixão. Livre da dor que sentes na contemplação de olhos tristes. Sua dor para mim é poesia. Que eu compro e consumo. A maldade está em ti que me julgas de um altar ético e moral. Eu sou livre para ter sabor e prazer onde você enxerga opressão, injustiça e sofrimento. Me regozijo com isso e assim continuarei. Não venha por em mim suas algemas, pois eu não me importo com os que sofrem, nem que seja você, meu bem.

quarta-feira, 18 de março de 2015

Servidora doméstica

Um tema que cada vez me incomoda mais e mais, e tem se tornado quase insuportável. É quanto a servidão entre os cidadãos ordinários. A relação com empregada doméstica, garçom, faxineiros sempre foi algo que me incomodou muito. Fica um clima esquisito, que dá pra perceber no olhar, no gesto das mãos. Não é como conversar com uma amiga, no ponto de ônibus. É um clima, me dá a sensação de que algo está errado, me dá vergonha. Tenho vergonha de cumprimentar, de não cumprimentar, todo papo parece inadequado. Falar como se fosse amiga me parece pior que como (amiga da) patroa. Coação ou coerção.

Num livro baseado no diário da empregada da Virginia Woolf, nas primeiras páginas a autora diz que vai descrever como "a admiração se transfora em decepção, o respeito em repulsa". Fechei o livro e enfiei no armário. Achei pesado e sombrio. Queria uma história leve, que me inspirasse justamente o oposto! Onde as relações se fortifiquem e não se desgastem.

Aí então, desempregada e pensando na próxima fatura do cartão, fui trabalhar de babá para conseguir fechar as contas. Por um lado eu queria mais essa experiência do que de fato fechar as contas (que eu poderia facilmente fazer emprestando sem juros dos pais, burguesa que sou). Sabe é meio engraçado ir com diploma de mestrado e passaporte italiano trabalhar de babá, nem a patroa sabia muito como agir. Percebi que a relação com a empregada da sogra (que gentilmente me hospeda) mudou, me revelando segredos sórdidos do mundo dos subalternos, as babás do playground conversavam comigo de modo mais fluido, não como quando eu descia com as sobrinhas. É que agora eu sei em primeira pessoa como é entrar no prédio pelo portão dos empregados e no apartamento pela porta de serviço, como é usar o banheiro de empregados que destoa do resto da decoração, como é lavar uma roupa que não é tua e educar (pq qndo me dei conta que não era para educar, mas só para manter viva a criança o trampo já tinha terminado) uma criança que vc não conhece, comer sozinha o que restar do almoço, nem pensar em sentar no sofá ou ligar a TV. A Nini não tem paciência com crianças, ela trabalha das 8 às 18, faz a faxina do duplex e cuida da Bia de 2 anos. Quer mesmo é trabalho de escritório. A Fafá recém casou e sonha em cuidar da própria filha.

Não acredito que alguém realmente queira servir. Que goste de ser empregada doméstica. Nesse caso haveriam cursos, especializações, congressos. "Sonho em ser empregada doméstica desde que era menina, enquanto não consigo a tão sonhada vaga estou me especializando". Ou ainda, se fosse um desejo natural fruto do acaso, porque só animaria as classes pobres? É razão da circunstância, que alguém se sujeita para fugir da miséria do desemprego.

Seria justo se aproveitar dessa situação? Se beneficiar da miséria alheia? Ao terceirizar o trabalho necessário, mas não lucrativo, pode-se dedicar ao lucro, ao estudo, à promoção. Que será repassada? "Meu salário e de minha esposa aumentaram 10%, vamos aumentar 10% do teu também".

Tirei o livro do armário. Talvez o mais digno seja mesmo essa transformação infeliz nesse tipo de relação. Quando ano depois de ano, limpando a privada, dobrando cuecas, se repara que não há nada além disso. Quando se dá conta de que nunca haverá amizade, apesar da convivência, nunca haverá igualdade, nem diálogo, quando a preocupação com sua doença se resume a encontrar um substituto, mesmo tendo dividido o mesmo teto anos e anos, é natural que surja certa repulsa... No caso da Inglaterra de 1920/50 as empregadas dormiam nas casas, elas moravam sem usufruir do espaço, da companhia, das conversas, do conhecimento.

Assim foi também com a Paula, governanta de Freud, segundo o livro baseado nos seus relatos. Relato é diferente de diário. E a empregada se diz fiel aos patrões, por medo de perder o reconhecimento, o emprego, o lar torna-se obsessiva. Ignora problemas de saúde, físico e social, para servir, temerosa de ser substituída. Por sua vez ela é mais incluída na família, quando é isolada pela Gestapo numa ilha a patroa torca cartas, manda dinheiro que apesar da recomendação "gaste com você", Paula usa comprando presentes aos patrões e seus amigos. No entanto, não há de modo algum sinais de possível igualdade, pois mesmo tendo estado por décadas sob o mesmo teto dos maiores psicanalistas da história, ela sabe menos sobre o tema do que eu. Não senta na mesa junto, não participa das discussões. Serve para servir.

Enquanto nos negarmos a dignidade dos trabalhos domésticos, não haverá coerência nas súplicas por justiça, igualdade e se quer fim da corrupção. Pois é corromper alguém, usar o poder do dinheiro para convencê-lo a abrir mão de sua dignidade, ao fazer um trabalho que o pagador não faria... Não há respeito possível nesse tipo de relação. Por mais polido que se busque ser, usar alguém obviamente mais pobre para limpar sua sujeira, para que possas morar numa casa maior que não se conseguiria limpar sozinho e trabalhar, é desrespeitoso, abusivo, e isso não tem valor pago capaz de extinguir. O contentamento verdadeiro em fazer esse serviço para terceiros, saudáveis e capazes, não pode ser comprado, pague-se quanto pagar, haja a lei que houver, discurse-se o que se discursar. A relação já se inicia corrompida, corrompendo.

Babá chama atenção de criança enquanto pai
faz selfie da família (Imagem: Eduardo Nunomura)

sábado, 21 de fevereiro de 2015

As Paredes que Separam e Contém

Cercada por muros e cercas a vida acontece.
Da maternidade para o apartamento, para o shopping, cercas dos parques, dos estádios, muros das escolas, universidades, empregos, hospitais, museus, igrejas, por fim, os grandes muros dos cemitérios.
Pela via pública se transporte de um muro ao outro. O público é sujo, é fedorento, é desagradável. As ruas de fluxo rápido expulsam, só servem ao privado com ar condicionado e música ambiente. O público é hostil e perigoso. Nas ruas sem calçadas o público se espreme entre altos muros hostis adornados com cerca elétrica e o atropelamento. Fedidas, quentes, sujas, barulhentas e violentas. Uma vez por ano tem samba na via pública, mas o espaço dentro da corda é privado.
A praça é pública, mas a grama tá alta, o banco é desconfortável, não tem sombra e a noite não tem luz, não se escuta grilo, sapo ou cigarra. O comércio acontece e a interação pessoas entre si e com ambiente passa para segundo plano.
A piscina é limpa, estável, segura, clorada, estéril. A água pública é perigosa, tem correnteza e poluição, tem bicho. A potável tá escassa vem de rio poluído. A água que foi murada e engarrafada é pura e saudável.
Muros de diversos tamanhos e cores devem ser respeitados em sua nobre e única função de segredar, conter os de dentro separados dos bárbaros, selvagens de fora. Muros não servem para propagar filosofias, ou demarcar espaços de gangues desmuradas, não servem para expor arte gratuita e nem protestos sérios. Quem desrespeita o muro ganha uma estadia entre grades para entender melhor o papel das paredes.


Bem vinda à (capital latina do capital) São Paulo, obrigada.
A lógica vigente parece ser "quanto menos natural e público melhor". A segregação descriminadora é parte do cotidiano.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Saber morrer


Li certa vez que o propósito da vida, para os budistas, pode ser resumido em aprender a morrer. Isso estava inserido num texto longo, com letras destacadas. A ideia me chocou, não tive tempo de ler o texto todo. Fiquei matutando sobre essa frase. Justificar a vida pela morte, como isso é possível? A vida é muito mais que a morte, a morte é um aspecto negativo, é o fim, é o horror. Para todos os lados que olho só vejo vida, não há espaço para morte que é ignorada sistematicamente. Conclui então, que esse era um conceito muito simplista da vida, além de macabro, pessimista e desencorajador. Minha fascinação pelo budismo diminuiu e segui exaltando a vida e ignorando a morte.

Mas ignorar não altera o fato de ela existir. E no fim desse ano ela fez questão de me lembrar disso. Primeiro um cachorro, grande e amarelo que, velho, arfava na cozinha. Depois uma avó, muito vaidosa e rica, colecionava fotos das mais diversas viagens sempre com belas roupas caras e volumosos cabelos loiros. Foi ficando esquecida, sentada num sofá olhando para televisão, repetia uma palavra ou outra, sem saber onde e com quem estava. Por vezes chorava dizendo ter apanhado de sua mãezinha. Da última vez que "conversei" com ela, me repetia "tem que ser firme. é firme. firme".
Às vezes me punha a me perguntar se era bom ou ruim não ter consciência da aproximação do momento final, da hora da estrela. Mas o fato é que penso que ela na verdade sabia o que se passava, mas não podia expressar. E então, se aproximando ainda mais, a internação do sogro, que com quase 70 havia recém tirado uma metástase do cérebro. Agora ele recebeu alta e encontra-se estável. O hospital onde fui visita-lo por toda a última semana é exclusivo para sêniores, muitas pessoas vivem seus últimos dias lá. Sem objetos pessoais, conhecidos, com história. Um quarto estéril, neutro com luz fria e cheiro de doença. Com agulhas enfincadas na pele, recebendo comida pelo nariz e ar artificial. Sendo assistido por desconhecidos que rotineiramente tocam para monitoramentos que machucam. Sem poder de decisão sobre seu próprio corpo e destino. Até onde devemos afastar a morte? 

Já nesse início de 2015, outra avó se foi. Me tornei próxima dela ao procura-la para ouvir sua história. Ela também estava enfrentando um câncer que lhe tirava as energias. Tanto que esse ano ela não pode se banhar no bravio mar, mas até 2013 se banhava todo o verão. A lucidez dela, beirando os 90, me espantava. O brilho no olhar quando sobre política, luta contra as injustiças. Mesmo dos seus anos presa, por causa da ditadura, conseguia exprimir as experiências sem drama, com serenidade e dignidade. Presa por atentado contra União ela era educadora de uma escola pequena que vinha apresentando resultados positivos. Os quais até hoje ela não vê igual. Ainda! Na educação o golpe foi duro. Em dezembro conversávamos por horas, enquanto me ensinava a fazer ambrosia, caminhávamos ou enquanto ela se encostava com o corpo cansado o peito chiando mas a alma serelepe saindo pela boca, se exibindo no brilho dos olhos. Em janeiro, houve uma piora no seu quadro físico e dentro de 5 dias já não usava mais o velho corpo.

Ao acompanhar todas essas experiências minha perspectiva muda. Tenho medo da morte, muito medo, mas tenho ainda mais medo de como isso pode ocorrer. O desconforto físico de perder a capacidade de caminhar, excretar, se comunicar. Agulhas furando a fina camada de pele para estourar veias ainda mais finas e sensíveis. Somando isso ao desconforto imaterial, rancores, mágoas, remorso e arrependimento. Essa transição pode se tornar uma árdua e torturante expiação, que estamos acostumados a observar em nossa cultura ocidental. Mas será que pode ser um processo natural, tranquilo e quem sabe até bonito?

Passei a me questionar como construir alguma estrutura para que essa experiência ocorra de forma positiva. Percebi então, que mesmo sem me dar conta, a morte já vem guiando meus passos. E tudo o que considero de grande valor, e pelo que me dedico, é justamente o que pode me proporcionar uma morte suave e tranquila.

Conhecer
O desconhecido é sempre temido. O que é a morte? O que é matéria? O que temos/somos de imaterial? Essa parte imaterial morre? Essas e outras tantas questões me levam a leituras diversas. E não encontro na ciência essas investigações, corro então pra religião e misticismo. Embora, devo reconhecer, encontro muito mais sobre a vida do que sobre a morte em todas as leituras, ainda assim, estão sendo de grande valia.
Com esse conhecimento consigo ver a transição de pessoas queridas com uma certa tranquilidade, e em alguns momentos posso até pensar na minha sem o pânico aterrador.

No corpo físico
É bem verdade que hábitos saudáveis aumentam nossa qualidade de vida. O que por si só já basta, mas alguns malefícios vem a longo prazo. O açúcar, a gordura, parecem inocentes saborosos. Horas e mais horas de cadeira no ar condicionado - lendo, estudando, trabalhando, assistindo, brincando - passam rápido. Mas é nos 80 que as articulações travam, o rim reclama, o hospital vira favorito no gps, e a coisa só piora...

Relações humanas
Aqui tem duas partes que se mesclam, mas separei. Uma mais individualista, que tem dois pontos, e outra holística, que pus abaixo.
Primeiro ponto, não é uma fada madrinha que vai por pessoas na sua volta. Cheias de amor, admiração e carinho. Esses sentimentos devem ser conquistados, nutridos, fortificados.
Um outro ponto é não ter rancores, arrependimentos e frustrações. Acho que devemos analisar esses sentimentos, identificar sua causa e transmutar as experiências negativas! Conseguir aceita-las como parte de nossa história e extrair as lições positivas.

Sentir dignidade na vida
Possivelmente, no processo da morte faremos um retrospecto do passado. E, analisando o mundo agora, com toda minha sanidade e capacidade moral e intelectual, me parece que "trabalhei e eduquei meus filhos" não é suficiente. As relações pessoais são importantes, como apontado acima, só que somos indivíduos dentro de uma sociedade. Não exercemos influência apenas dentro de nossa família e círculo social, exercemos influência na sociedade e ambiente ao compramos algo que satisfaz um desejo pessoal, mas explora e oprime outras pessoas e extirpa os bens (recursos) naturais. A ânsia por ter (coisas e experiências pessoais) ignorando seus efeitos impactos, mesmo com acesso a informação, pode agravar uma crise de consciência tardia.

Acho, então, que minha primeira analise do conhecimento budista é que foi supérflua. Aprender a morrer é muito desafiador e possivelmente menos individualista do que parece numa primeira analise.

Espero que todos possamos chegar a esse momento saudáveis, satisfeitos e felizes.