quinta-feira, 14 de abril de 2022

Cinco dias

 Ele demorou cinco dias para morrer. 

Antes disso demonstrava sinais de fraqueza, já não controlava as excreções, o cheiro forte de xixi impregnava. As patas traseiras já não estavam ágeis, e aconteceu de ficar deitado por algumas horas no próprio xixi. A velhice, a fraqueza e a aproximação da morte causa muito incomodo, alguns amigos me sugeriram acelerar o processo, usar um atalho e acabar com o sofrimento. Ele parecia perdido, imerso nos próprios pensamentos, ou na falta deles. Eu não tinha certeza se ele sofria. Éramos nós, humanos olhando a fragilidade à que a natureza nos submete, nós sofremos com a certeza de que a vida, o instante entre o nascer e morrer, é um empréstimo. A natureza nos empresta esse tanto de vida por um tanto de tempo, e depois toma de volta.

O cachorro, filho do Sid, meu primeiro cachorro, entrou na minha vida por acaso, não por escolha, mas tão pouco a contra gosto. Ele seria do meu sogro, mas a ex-esposa o julgou incapaz de cuidar e não quis dar, o meu então namorado o pegou por considerar que ficaria mais feliz no lugar onde morávamos, com espaço, acesso à natureza e a companhia do irmão Gurila. O namoro acabou, de modo que coube inteiramente a mim saber como conduzir o cuidado.

Eu não gostava de vê-lo fraco, eu não gostava do cheiro de urina, nem de limpar o coco. Para lhe cortar as unhas eu precisava segurar com força as patinhas, e tinha receio de lhe machucar. Em dias de sol lhe dava banho. E preparava marmitas semanais de carne fresca. Toda manhã ele ia pra cozinha esperando por esse momento, e eu o levava pro gramado. 

Na terça-feira ele não veio. E eu o encontrei entre os pés de mamão, preso por pernas que não mais obedeciam. Meu filho me ligou, e falávamos por vídeo, o Jacques ficou com a carne na boca, e só engoliu depois que o Gabriel disse "vai Jacques, come a carninha". E então, ele não comeu mais nada, nem bebeu água, nem se levantou. Eu saí pra trabalhar, mas as lágrimas me corriam, elas brotavam incessantemente, uma enxurrada. A única coisa que eu queria era ficar ao lado dele. Meu camarada me abraçou e me disse pra faltar ao trabalho. Minha amiga me abraçou, me preparou comida. Eu estava triste. Sinto saudade do meu filho. 

O cachorro respirava. Lhe dei água em uma colher, ele sorveu. Passei a noite pensando que ele morreria em qualquer momento, eu queria tanto estar junto dele nesse momento. Eu não queria encontrar o corpo morto. Era sempre desafiador direcionar meu olhar pra ele. E quando via o movimento do ar o suspense continuava. Eu estava ansiosa, comprei pá com o cachorro ainda vivo. Eu teria que estar forte para enterrá-lo. 

Não gostei de estar ansiosa, eu precisaria me libertar da ansiedade pra me conectar com os sentimentos que me preenchiam a alma. Fui trabalhar na quarta. Mandei mensagem pro ex-namorado, dizendo que o cachorro simplesmente não conseguia morrer, pedi que ele viesse com nosso filho, ele não veio. Levei o cachorro no riozinho que costumávamos ir, eu brincava de ninja com o Gabriel sobre as pedras e o cachorro se abaixava na água pra refrescar a barriguinha. Nesse dia ele não esboçou nenhuma reação, era por mim. Entendi que grande parte da minha tristeza vinha de reconhecer que já não haveria a família que havíamos vivido. Esse desejo já tão inconsciente seria enterrado junto com ele. O lapso de esperança de uma reconciliação, estava sumindo como a massa muscular do cachorro, me senti só. A vida está no viço dos músculos, no brilho dos olhos, e vai saindo aos poucos. Se desfazendo no ar. Minha amiga nos acompanhou, contente em descobrir um novo lugar. Eu estava acompanhada. De noite companheiros chegaram, confraternizamos um jantar, jogamos bilhar, eu dormi, acordei e o cachorro ainda respirava. 

Eu lhe carreguei no colo, embalei suavemente, minha respiração estava travada. O soltei, e deitei-me junto do companheiro que pode sentir um pouquinho do meu pesar, ele não disse uma palavra, me acariciou suavemente os cabelos. Meu filho me ligou e eu disse que o cachorro estava ainda mais fraco. Ele desligou e meu camarada chegou, me preparou um suco verde. Ficou evidente que eu não estava só. Mesmo sem família por perto o que eu sentia não era solidão. Era tristeza. Morrer é um processo difícil. Amar é fácil, se não é fácil, leve, gostoso, prazeroso não é amor. Soltar toda essa integridade que concentra um punhado de vida, isso não é fácil.

Estendi meu saco de dormir próximo ao cachorro, acendi uma vela. Li uns trechos do Livro Tibetano dos Mortos, sem lá muito sentido, exceto pelo fato de falar sobre os olhos. Então, era assim mesmo, toda a humanidade que acompanhou o processo natural de morte, ao longo de séculos, me trouxe uma certa normalidade. Passamos a noite no sereno.

Na sexta, quando voltei do trabalho ele ainda respirava, e estava molhado de xixi, lhe preparei um banho morno de camomila e macela, numa bacia tão grande que o corpo flutuava, ornamentado pelas florzinhas delicadas. Um casal de amigos esteve conosco, ela com pesar, ele me assegurando a serenidade do cachorro. Choveu, viemos pra dentro. Essa foi a noite mais difícil, ele tentava latir, tentava se erguer e caia com a cabeça no chão, eu lhe contive com força, e pensei que talvez tivesse errado, que deveria ter poupado. Eu o sustentava quando ele tentava levantar, o apoiava o máximo que minha força e paciência permitia, e então o deixava tombar suavemente cansado, até que ele se agoniava e de novo eu lhe sustentava o peso. Em algum desses intervalos consegui dormir, e quando acordei não o encontrei. Fui no jardim, ele não estava. Ele havia passado por uma fresta de dez centímetros e se aninhado debaixo do sofá. Uma toquinha escura. Lá passou o sábado, apenas incomodado para que eu lhe desse água até que não quisesse mais. Essa noite, do sábado, o deixei e dormi no meu quarto.

No domingo pela manhã recebi muito amor de quem me acompanhou por todo processo. Meu filho me ligou, lhe mostrei o Jacques na toquinha. E preparei mais um banho de camomila com macela, ouvíamos incessantemente Leyfðu ljósinu. O pus na água morna, ele engasgou, a respiração parou discretamente, seu coração bateu em minha mão, até parar. E assim, já não havia mais vida. E eu estive com o Jacques em seu último momento. Não há mais sua presença, nem seu pelo macio.








quinta-feira, 7 de abril de 2022

Sou uma mas não sou só

 Meu cachorro está morrendo e com ele a ideia do que foi a minha possibilidade de família. A saudade, de acreditar nessa ideia, me faz criar um tempo em que havíamos nós. Como se tivesse havido concretamente um “nós três” no qual eu não me sentisse só, a implorar por migalhas de amor, carinho e atenção.

Sou uma, mas não sou só.

Meu cachorro de 16 anos morre lentamente. Começou cambaleando, a vida parava de visitar os membros inferiores, e não havia mais controle das excreções. Até que ontem ele parou definitivamente de andar, e já não conseguia comer nem beber água. Eu o banhei no rio. E ele passou todo o dia respirando. Enquanto minha ilusão sobre o trio familiar se desfaz, tão lenta quanto a morte do cachorro.

Não que eu queira me desfazer dessa crença, como não quero que o cachorro morra. Mas, a vida calmamente vai deixando o corpo dele, ele está sublimando, consumindo-se, sumindo. A se diluir no ar.

Gostaria que os três pudessem se juntar, pra nos despedir do cachorro e também da ideia de “nós três”.

Por um momento pensei que pudesse estar sentindo solidão. Se não sou trio estou só. Mas recebi abraço. De companheira e companheiros. Me alimentaram. Sem drama, sem lágrimas, sem gravidade, assim, leve. Sinto os pelos macios do monstro da solidão, amansado. A concepção da existência em três vai se esvaindo, sublimando como os músculos do cachorro. E o espaço que deixa não é vazio, embora amplo é iluminado e arejado. Preenchido de abraços, carinho, cafunés, olhos, mãos, toques afetuosos e não compulsórios.

Somos um, sou uma mas não sou só.