segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Hibisco Roxo

É sabido que a lógica de dominação e exploração se mantém graças à sua reprodução nas células e núcleos familiares. O patriarca tem o poder, e ao longo de sua jornada, bebês e meninos vão encontrando todo o incentivo e sinais para moldar sua arquitetura psíquica e quando chegar sua vez de exercer o poder sobre “os seus” fazê-lo em nome de um “amor” possessivo e dominante.  

Havemos de reconhecer a existência de exceções, não me refiro àquelas em que o patriarca tem sexo feminino e usa esmaltes. Que embora não tenha junto a si a força militar, vinda da força física, das notícias de feminicídio (o Brasil registra um caso de feminicídio a cada 7 horas*), ainda assim é corrosivo e destrutivo. Proibindo que o filho mantenha relações amorosas saudáveis para além do núcleo. As exceções são os pais amorosos que fomentam os vínculos externos.

Esse livro, literatura nigeriana, traz um pai (pequeno burguês, dono de uma fábrica de biscoitos) dominador e possessivo, que sob o pretexto de proteger os filhos dos perigos do mundo pagão  afasta o filho e a filha de sua terra natal, onde vive a tia alegre e amorosa que mantém uma vida comunitária ativa. Ele castiga o filho e a filha por supor que gostam da tia pagã. Ele age no sentido de controlar, monopolizar e dominar as emoções e pensamentos das crianças. Atua para que não haja diversidade, nem soberania nos amores e vínculos, que haja apenas ele e seu domínio imperialista.

Não se trata de um mal de nossos tempos atuais ou de nossa natureza humana. A marxista Silvia Frederici busca esmiuçar o tanto que as violências destroem a cultura comunal. O estupro apoiado pelo emergente estado burguês rasgou o tecido social, destruiu os vínculos de parceria, fragmentou a percepção de coletividade e favoreceu a exploração da força de trabalho para acumulo de riqueza. Nas páginas do Calibã e a Bruxa refletimos o tanto que a inserção do castigo às crianças nas colônias  corrói culturas pautadas no amor e na liberdade, e vai impondo ardilosamente a lógica de dominação pelo uso da força.

A cultura do estupro pra além do dano causado ao indivíduo sustenta todo o arranjo social de apropriação, acumulação, exploração, dominação. Arranjo que pra além de tornar nossas vidas (ou ao menos a vida de 99% da população) menos pujante do que pode ser, e ainda ameaça a existência da vida em suas diversas formas. Florestas tornam-se deserto, oceanos tornam-se deserto, o clima cada ano mais extremo e hostil. Quanto mais raro mais caro. E 1% dos seres humanos querem mais. E ganham mais, na medida em que um homem recusa consolidar uma relação de profundo respeito, amor, parceria e admiração com uma mulher. Invés disso, se ocupa em destruir a vida e o amor que desprendem de seu canto e seu sorriso.

Amemo-nos.

E mantenhamos nosso amor, minhas irmãs. Sigamos amando nossas crias, sigamos amando a vida, sigamos amando-nos umas as outras, aos pássaros, às baleias, à natureza selvagem, à sabedoria ancestral, e aos seres humanos. E sigamos lutando com ódio contra as violentas opressões.

* https://catracalivre.com.br/cidadania/brasil-registra-um-caso-de-feminicidio-a-cada-7-horas/

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Gestar e parir na sociedade do estupro

 O gerar e o parir são vivências de extrema potência. 

Cada gestação é única e cada parto é único. Imaginem só que mesmo algo tão preciso como o tempo perde o poder. A gestação pode durar de 24¹ até 53² semanas (!). A partir daí tudo pode acontecer, bolsa romper e ficar dias rota sem prejuízo algum, bolsa que não rompe e o bebê nasce empelicado, trabalho de parto de minutos, ou dias, orgasmo no expulsivo! São todas possibilidades.

"Cientifizamos" o parto e nossa ciência não sabe lidar com a diversidade e incerteza. Queremos garantir que tudo ocorra bem, ninguém quer assumir a responsabilidade de tomar uma decisão ruim num momento tão agudo da existência. E então a responsabilidade fica em protocolos que buscam dioturnamente normalizar com médias, "via de regra"... Numa ansiedade de dar um contorno bem definido ao surpreendente mistério de nascer. Criam-se profissões, especializações, aparelhos, drogas, e outras menos "convencionais": aromaterapia, acupuntura, homeopatia, ritos, "poder da mente", conexões astrais... É tão lindo que um simples corpo redondo desbanca tantas ideias, narrativas, mercadorias e expõe o teatro em que estamos. 

Minha amiga abriu uma angustia "eu não sei o que preciso fazer pra ajudar o bebê nascer". E incrivelmente, para uma tarefa de tamanha importância, o que resta a fazer é desfrutar. Em nenhum trabalho importante, em nenhum momento de nosso cotidiano somos impelidas a desfrutar e a gestação e o parto escancaram isso. Em condições saudáveis tudo o que não é corpo gestante é supérfluo e dispensável. Médico, hospital, medicamento, doula, música, cheiro, vela, marido, profissões, mercadorias, papéis sociais são dispensáveis. É preciso um bocado de humildade pra nos reconhecer dispensáveis em um momento tão espetacular. Mas não é espetáculo. O que importa é o corpo gestante e o quanto esse corpo está apto a relaxar e permitir que a vida escape de si. 

Esse relaxamento depende de respeito, o parto desvenda a incomoda situação de que nossa sociedade é sustentada pelo estupro. Existe uma tênue linha que delimita o que é estupro do que é desejo e tesão femininos. É possível fazer sexo e engravidar sem prazer, mas jamais seremos capazes de parir-nascer num ambiente hostil. "A sociedade" tem falhado em não nos estuprar. Os hormônios liberados, o movimento do útero, a configuração do canal vaginal, nada vai promover o parto se houver a percepção de um menor sinal de ameaça. É amando, em um corpo inundado de ocitocina e prazer que a vida começa.


1) https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2012/10/10/bebes-prematuros-tambem-podem-nascer-de-parto-natural-com-seguranca-diz-estudo.htm

2) http://content.time.com/time/subscriber/article/0,33009,797153,00.html