sexta-feira, 18 de março de 2022

Cinturão de Vênus (Ctenóforo)



O desejo de estar no mar. Para me saber acolhida, envolvida. Montei na bicicleta e fui, só. Era noite, me despi num cantinho escuro e me atirei na água. Algo gelatinoso roçou na minha perna, e mais outro. Não me machucava. Pensei que fosse plástico, mas quando tirei da água se desfez. Quatro dias depois, sob sol forte fui novamente. Dessa vez pude ver, o reflexo colorido, tão delicado. Haviam muitos, se enroscavam me acarinhando a perna. Uns pequenos peixinhos vez ou outra me beliscavam o pé. Nosso resquício de vida marinha.

Muitos anos atrás, numa sala fechada, com luz artificial estudávamos os inimeráveis compostos químicos despejados nos oceanos. E a morte que carregam em si. São toneladas de shampoo, fertilizantes, remédios, os compostos reagem e enquanto alguns cientistas buscam conhecer o efeito dessas complexas interações no funcionamento da vida, como alterações hormonais que interferem na reprodução, novos produtos são liberados no mercado, para que os cabelos fiquem "5 vezes mais brilhantes". Nossos estômagos embrulhavam. Mas a princípio estávamos lá por um diploma, por uma profissão. A matéria "poluição marinha" era optativa. A informação era repassada, pappers lidos e precisávamos saber para transcrever na prova e receber um número no boletim que ficaria em nosso histórico escolar.

Meu filho era um recém nascido e o cheiro artificial dos produtos de bebê me irritavam. Nenhum era tão prazeroso quanto o cheiro dele. Usava amido de milho quando punha fralda. E conforme foi crescendo ele mesmo rejeitava shampoos, berrava quando lhe caiam nos olhos. Eu lia o rótulo em voz alta "não arde", até que parei de obrigar, os cachinhos se formaram puros e brilhantes. O pai dele se mostrou contrariado. Percebi que já passava da hora de eu abolir o uso de shampoo da minha própria cabeça. E foi o que fiz. Sem alardes reduzi o uso de químicos domésticos ao mínimo possível em uma vida urbana de funcionária pública.


Pra vida marinha não faz a menor diferença se eu uso ou não shampoo. Independente da minha escolha individual, os produtos químicos continuarão a ser produzidos, vendidos e despejados nos corpos hídricos. E por isso não tem sentido algum desgastar minhas relações de afeto para convencer indivíduos a boicotarem a indústria farmacêutica. Não são os consumidores que determinam o que e como será produzido e distribuído. Eu nunca vi alguém comprar um tanque de guerra e ainda assim, são produzidos aos montes. Para esse ano de 2022 tem-se aprovado o gasto de US$ 768 bilhões de dólares para "defesa" dos EUA. A vida não é prioridade num arranjo social assentado sobre a lógica de acúmulo e concentração. 

A gente é que vai levando o cotidiano como pode, quando uso vinagre de maçã produzido pelos companheiros do MST no meu cabelo me fortaleço. Sorrio com os cabelos brilhantes a esvoaçar enquanto procuro de que maneira poderemos superar essa lógica tão nefasta. E produzir violões invés de tanques, inteligência invés de notas, tempo livre invés de produtos tóxicos...

quinta-feira, 17 de março de 2022

O que importa

Temos um chão para pisar.

Talvez as coisas piorem. Talvez as condições necessárias à vida tornem-se ainda mais inacessíveis. Nesse cenário de guerra, em que as "nações" respondem ampliando investimento em arsenal bélico. O suporte natural chega no seu limite, a quantidade de pessoas que migram em consequência das alterações climáticas aumenta vertiginosamente sem nenhuma política séria de mitigação em todo ocidente midiático. Mais bombas são produzidas, mais tecnologia para qualificar mísseis. 

Não é o rumo social que queremos e trabalhamos como podemos para alterá-lo. Esperamos a dissolução da OTAN, acordos de desarmamento, investimentos pesados em reflorestamento, mitigação ambiental, alteração de matriz energética. Esperamos, e trabalhamos apontando as possibilidades de caminhar nessa direção. Mas, percebemos o quanto que as políticas de destruição se impõe. Quem sabe a aproximação de um cenário catastrófico alimente a fome de acumular, de salvar a si próprio, foguetes pra marte, bunkers abastecidos, sítios cercados com fonte de água pura. Ações que confirmam a percepção do tamanho caos social em que estamos. Saber disso e não se desesperar. Saber disso e justamente tornar-se mais e mais generoso. Nesse cenário catastrófico. O que nos importa manter da humanidade é o amor, a capacidade de construir relações pautadas no respeito à vida em sua potência. É isso que precisamos salvar e resguardar. Enquanto a lógica de apropriação e dominação rui, não é possível que se sustente, que se perpetue, não é possível pois não há "recursos naturais" pra isso, ademais pulsamos por florir e esse cenário tóxico não é favorável ao florescer humano. Nos mantemos firmes no propósito de viabilizar o desenho social que coíba relações abusivas, um modelo no qual o bem viver seja o objetivo de toda a decisão política, e direcionamento financeiro. 

Essa firmeza vem do chão.