sábado, 27 de outubro de 2018

O perigo da Sororidade

Ouviram minha história. Num sábado, sem muita pretensão fui a um encontro com mulheres. A proposta linda foi sugerida por uma mulher forte e sensível, que eu muito admiro, a Tata. Criou uma chamada no face, no grupo de whatsapp "Mulher, quero ouvir tua história", um encontro de cuidado no qual uma mulher recebe cuidado das outras, enquanto fala sua história.

Reconhecendo a extrema carência social desses momentos de cuidado a proposta me cativou. E como ninguém se prontificava a começar eu aceitei. Claro que eu branquinha de classe média, toda privilegiada, com as contas em dia, em um relacionamento estável não preciso de cuidado, imagina!! Rá! Mas tão boa pessoa que sou, queria mesmo era servir, e do alto da minha "bem resolvidisse" percebi que os encontros só rolariam se alguém começasse, eu não gosto de falar e amo ouvir, o que aumenta o altruísmo do meu gesto! Não faria por mim, faria pelas outras!!!

Cheguei num espaço arrumado, com comidinhas saudáveis (do jeito que havia dito que gostava), chá quente, e haviam mulheres e crianças. Conversamos a toa, até que fomos conduzidas ao propósito: me escutar. 

Por alguma estranha razão sempre achei que pensar em mim fosse algo muito feio a se fazer, como se me tornasse uma pessoa má e egoísta! Fui por anos me arrastando pela vida, me ignorando. Recebendo um feedback bastante positivo, ninguém a minha volta parecia mostrar qualquer interesse pelos meus sentimentos. Por isso foi bastante estranho reconhecer que sim, aquelas mulheres realmente estavam dispostas e interessadas em "desperdiçar" seu tempo me ouvindo, não pra me julgar e espalhar fofocas por aí, mas por sororidade. Achei que pudesse falar cinco minutos, onde nasci, onde morei e o que estudei e pronto, estaria livre para ouvir as amenidades. Mas não foi assim, não escapei do mergulho profundo, com muito talento a Tatá colocou uns papeis na mesa e faria uma linha do tempo da minha vida. Conforme eu falava ela desenhava. E haviam perguntas. Foi muito, muito, muito inusitado ser vista, por outras e por mim mesma.

A narrativa foi truncada, travada, difícil. Eu achei que depois das seções de terapia eu conseguiria falar fluentemente sobre minha história. Mas não! Eu me esquecia, quando resgatava um momento vinham sentimentos que eu nem sabia que tinha sentido, a frieza e a racionalidade com que eu via a minha vida ficaram inibidas. "O que vc gosta de fazer? Que música vc gosta? Qual sua comida favorita?" Eu, constrangida, respondia qualquer coisa, mas o que eu pensava era "não tenho a menor ideia", como se eu não existisse. Eu senti pena de mim, a compaixão que eu me esforçava para sentir pelas outras apareceu! Empatizei comigo mesma. Vazia. Uma pessoa vazia (emocionalmente) com um porão cheio. Cade aquela "bem resolvidisse" que minhas autoanalises me indicavam?   Foi muito inquietante reconhecer que a mulher "bem resolvida", boa samarita, movida unicamente por altruísmo era uma distorcida projeção. Com um discurso de empoderamento e liberdade, eu me anulava, me submetia, ignorando minhas opiniões e sentimentos. Uma criança ferida precisando de cuidado, frágil e vulnerável. Que imagem...

Percebi que as mulheres foram contagiadas pela grave introspecção com que eu me acostumei a viver. Mesmo depois de encerrada a confusa narrativa, não se retomou a conversa fácil e fluida de antes. Acho que alguma coisa acontecia na minha alma, fusionada às almas presentes e ausentes. Tudo é um processo, mas em alguns momentos o processo se desenvolve de modo mais rápido e intenso. O encontro durou muito mais tempo do que havíamos planejado, alguma coisa nos mantinha naquela conexão, uma coisa muito misteriosa que eu não estou certa de como nomear, cura, talvez...

Depois de anos sem conseguir cantar, naquela noite eu dancei no banheiro, sozinha e pelada, cantando no chuveiro, rebolando de um lado pro outro, sentindo prazer e alegria em ser. Eu tenho certeza que aquele momento me fortaleceu, me motivou a existir! A assumir o papel central da minha história, a roteirista/protagonista. Viver o discurso do empoderamento. O discurso é fácil e lindo, todo mundo aplaude! Mas sua materialização não é tão simples, é bastante caótica e complexa. E nós não fomos educadas na complexidade do caos, nossa sociedade não acolhe o caos. O caminho para a felicidade verdadeira passa por rupturas que podem nos levar a uma confusão tão forte que sem suporte beira a loucura. E isso que chamo de suporte não tem receita, não é algo estruturado, certo e seguro. É essa magia de encontros como esse, de amizades acolhedoras.

A sororidade é de uma potencia revolucionária, avassaladora. Extremamente perigosa, ela é a força capaz de romper os padrões que nos afastam de nossa essência, da plenitude.

"O que você falaria pra Évellin adolescente?"
"Acredita, confia em você!"
"E pra Évellin de agora?"

Sorri e me senti motivada para finalmente fazer isso. 
Ouvir meu corpo e meus sentimentos.

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