Me lembro quando minha
concepção de mundo começou a mudar radicalmente. Era fim de outubro, me lembro
porque usava meu iPad novo, que tinha ganho no dia das crianças. Eu estava
deitada na cama, minha mãe bateu e entrou. Continuei concentrada na minha TL.
Ela sentou-se na cadeira, possivelmente olhando para mim, aquela sensação
incomoda de ter alguém te olhando.
- O que você quer, mãe?
- perguntei sem tirar os olhos do iPad.
- Bem, é meu domingo de
folga, o dia está bom, acho que a gente pode dar uma volta pela orla.
Exercendo meu papel de
adolescente, demonstrei meu desagrado com a ideia bufando alto.
- Vai, vamos lá, quero
conversar com você. E deixa esse troço ai.
Me calcei e saímos. O
sol brilhava e o vento soprava moderadamente de nordeste. Caminhamos um pouco
pela Henrique Pancada e nos sentamos em um banco voltado para lagoa.
- Você sabe que sua avó
se matou, né?
- Aham... Eu fui no
enterro – falei com tom de “é óbvio que sim”.
- Pois é. – pausa – no dia
do velório seu avô me falou que eles sempre tiveram uma vida tão dura – ela foi
dar um sorriso, mas acabou saindo um soluço e lágrimas começaram a se formar em
seus olhos. Eu começava a me sentir muito desconfortável, e preferia estar
trancada no meu quarto, com a simplicidade de meu iPad, sem lágrimas nem
sentimentos alheios.
Sem saber o que fazer
nem o que dizer, fiquei esperando que ela continuasse.
Link da imagem |
- Eu nunca soube! Quer
dizer, eu sabia que não podíamos comprar muitas coisas e que eu era a única
aluna da turma que não tinha sapato, mas eu nunca desconfiei que a nossa vida
era dura. Minha mãe assava biscoitos com sorrisos, ela inventava mil e uma brincadeiras comigo,
nós dançávamos, eu pescava com meu pai, todo fim de aula no verão pulava na
lagoa com os amigos. Eu me sentia tão feliz, amada, completa. Nunca desconfiei.
Sabe, Rita, quando me mudei para Porto não foi fácil. Trabalhar e fazer a
faculdade, ter que escolher entre o almoço ou o aluguel. Realmente não é uma
vida feliz, como aquela que minha mãe se esforçava para me dar apesar de suas
preocupações internas tão cruéis. Meu pai disse que eles constantemente eram
ameaçados de despejo. Que se não fossem as galinhas, a doação do leite da nossa
vizinha Nini não teríamos o que comer. Os pescados de meu pai mal davam
para manter a casa – ela ergueu seu olhar, mirando o horizonte – Eu só queria
ter dito a ela que minha infância foi deliciosamente feliz.
- Mãe, isso não teria
mudado as coisas. Não foi culpa sua!
- Rita, tenho te
fornecido tudo para facilitar sua vida. Quero que seu ingresso na vida adulta
seja sem nenhuma privação. Mas, desdaquele dia, que seu vô me falou aquilo, eu
fiquei pensando, será que eu tenho te passado a felicidade, a despreocupação e
o amor que eu vivenciei na minha infância? Eu nem te conheço. Fui tão ausente
na tua infância, sem biscoitos contentes... – conseguimos rir da entonação de importância
que ela deu aos biscoitos. Foi um riso triste, mas cheio de cumplicidade. Um
riso meio desesperado que se transformou num choro soluçante. Juntas,
abraçadas, choramos nossa tristeza, nossa desgraça, nossos pesares e a saudade
de nós mesmas.
Link da foto |
Não falamos muito
depois desse momento. Nos acalmamos aos poucos, assistimos ao por do sol. E voltamos
caminhando. Tentamos fingir que nada havia acontecido, eu seguia interpretando
meu papel de adolescente entediada. Mas, todo domingo de folga dela assávamos biscoitos
em dia frio, íamos ao Cassino em dias quentes, ou caminhávamos juntas,
visitávamos meu avô.
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Nos eduquemos juntas.