quarta-feira, 22 de abril de 2015

A gaiola de ouro

- Temos liberdades diferentes. Sua selvageria agora é prisão. Você diz que busca liberdade, mas é incapaz de ver que talvez seja eu mais livre que você. Enquanto geme por igualdade e justiça se priva de usufruir privilégios. Deixe aos que precisam a luta. Quando você toma uma voz ela se cala. A gaiola de ouro prende os idealistas fora do conforto. A brilhante gaiola da liberdade fabricada. Essa em que você orgulhosamente se recusa a entrar. Na corrente dos ideais humanistas, na busca obcecada pela verdade. Eu, livre do conceito de bem comum aproveito os serviços e favores, os prazeres e recursos. Livre que sou para comprar. Comprar coisas e pessoas, paisagens e confortos, compro e consumo, e pago a vista ou parcelado. E como, degusto e saboreio vidas sorrindo, pois sou livre da compaixão. Livre da dor que sentes na contemplação de olhos tristes. Sua dor para mim é poesia. Que eu compro e consumo. A maldade está em ti que me julgas de um altar ético e moral. Eu sou livre para ter sabor e prazer onde você enxerga opressão, injustiça e sofrimento. Me regozijo com isso e assim continuarei. Não venha por em mim suas algemas, pois eu não me importo com os que sofrem, nem que seja você, meu bem.

quarta-feira, 18 de março de 2015

Servidora doméstica

Um tema que cada vez me incomoda mais e mais, e tem se tornado quase insuportável. É quanto a servidão entre os cidadãos ordinários. A relação com empregada doméstica, garçom, faxineiros sempre foi algo que me incomodou muito. Fica um clima esquisito, que dá pra perceber no olhar, no gesto das mãos. Não é como conversar com uma amiga, no ponto de ônibus. É um clima, me dá a sensação de que algo está errado, me dá vergonha. Tenho vergonha de cumprimentar, de não cumprimentar, todo papo parece inadequado. Falar como se fosse amiga me parece pior que como (amiga da) patroa. Coação ou coerção.

Num livro baseado no diário da empregada da Virginia Woolf, nas primeiras páginas a autora diz que vai descrever como "a admiração se transfora em decepção, o respeito em repulsa". Fechei o livro e enfiei no armário. Achei pesado e sombrio. Queria uma história leve, que me inspirasse justamente o oposto! Onde as relações se fortifiquem e não se desgastem.

Aí então, desempregada e pensando na próxima fatura do cartão, fui trabalhar de babá para conseguir fechar as contas. Por um lado eu queria mais essa experiência do que de fato fechar as contas (que eu poderia facilmente fazer emprestando sem juros dos pais, burguesa que sou). Sabe é meio engraçado ir com diploma de mestrado e passaporte italiano trabalhar de babá, nem a patroa sabia muito como agir. Percebi que a relação com a empregada da sogra (que gentilmente me hospeda) mudou, me revelando segredos sórdidos do mundo dos subalternos, as babás do playground conversavam comigo de modo mais fluido, não como quando eu descia com as sobrinhas. É que agora eu sei em primeira pessoa como é entrar no prédio pelo portão dos empregados e no apartamento pela porta de serviço, como é usar o banheiro de empregados que destoa do resto da decoração, como é lavar uma roupa que não é tua e educar (pq qndo me dei conta que não era para educar, mas só para manter viva a criança o trampo já tinha terminado) uma criança que vc não conhece, comer sozinha o que restar do almoço, nem pensar em sentar no sofá ou ligar a TV. A Nini não tem paciência com crianças, ela trabalha das 8 às 18, faz a faxina do duplex e cuida da Bia de 2 anos. Quer mesmo é trabalho de escritório. A Fafá recém casou e sonha em cuidar da própria filha.

Não acredito que alguém realmente queira servir. Que goste de ser empregada doméstica. Nesse caso haveriam cursos, especializações, congressos. "Sonho em ser empregada doméstica desde que era menina, enquanto não consigo a tão sonhada vaga estou me especializando". Ou ainda, se fosse um desejo natural fruto do acaso, porque só animaria as classes pobres? É razão da circunstância, que alguém se sujeita para fugir da miséria do desemprego.

Seria justo se aproveitar dessa situação? Se beneficiar da miséria alheia? Ao terceirizar o trabalho necessário, mas não lucrativo, pode-se dedicar ao lucro, ao estudo, à promoção. Que será repassada? "Meu salário e de minha esposa aumentaram 10%, vamos aumentar 10% do teu também".

Tirei o livro do armário. Talvez o mais digno seja mesmo essa transformação infeliz nesse tipo de relação. Quando ano depois de ano, limpando a privada, dobrando cuecas, se repara que não há nada além disso. Quando se dá conta de que nunca haverá amizade, apesar da convivência, nunca haverá igualdade, nem diálogo, quando a preocupação com sua doença se resume a encontrar um substituto, mesmo tendo dividido o mesmo teto anos e anos, é natural que surja certa repulsa... No caso da Inglaterra de 1920/50 as empregadas dormiam nas casas, elas moravam sem usufruir do espaço, da companhia, das conversas, do conhecimento.

Assim foi também com a Paula, governanta de Freud, segundo o livro baseado nos seus relatos. Relato é diferente de diário. E a empregada se diz fiel aos patrões, por medo de perder o reconhecimento, o emprego, o lar torna-se obsessiva. Ignora problemas de saúde, físico e social, para servir, temerosa de ser substituída. Por sua vez ela é mais incluída na família, quando é isolada pela Gestapo numa ilha a patroa torca cartas, manda dinheiro que apesar da recomendação "gaste com você", Paula usa comprando presentes aos patrões e seus amigos. No entanto, não há de modo algum sinais de possível igualdade, pois mesmo tendo estado por décadas sob o mesmo teto dos maiores psicanalistas da história, ela sabe menos sobre o tema do que eu. Não senta na mesa junto, não participa das discussões. Serve para servir.

Enquanto nos negarmos a dignidade dos trabalhos domésticos, não haverá coerência nas súplicas por justiça, igualdade e se quer fim da corrupção. Pois é corromper alguém, usar o poder do dinheiro para convencê-lo a abrir mão de sua dignidade, ao fazer um trabalho que o pagador não faria... Não há respeito possível nesse tipo de relação. Por mais polido que se busque ser, usar alguém obviamente mais pobre para limpar sua sujeira, para que possas morar numa casa maior que não se conseguiria limpar sozinho e trabalhar, é desrespeitoso, abusivo, e isso não tem valor pago capaz de extinguir. O contentamento verdadeiro em fazer esse serviço para terceiros, saudáveis e capazes, não pode ser comprado, pague-se quanto pagar, haja a lei que houver, discurse-se o que se discursar. A relação já se inicia corrompida, corrompendo.

Babá chama atenção de criança enquanto pai
faz selfie da família (Imagem: Eduardo Nunomura)

sábado, 21 de fevereiro de 2015

As Paredes que Separam e Contém

Cercada por muros e cercas a vida acontece.
Da maternidade para o apartamento, para o shopping, cercas dos parques, dos estádios, muros das escolas, universidades, empregos, hospitais, museus, igrejas, por fim, os grandes muros dos cemitérios.
Pela via pública se transporte de um muro ao outro. O público é sujo, é fedorento, é desagradável. As ruas de fluxo rápido expulsam, só servem ao privado com ar condicionado e música ambiente. O público é hostil e perigoso. Nas ruas sem calçadas o público se espreme entre altos muros hostis adornados com cerca elétrica e o atropelamento. Fedidas, quentes, sujas, barulhentas e violentas. Uma vez por ano tem samba na via pública, mas o espaço dentro da corda é privado.
A praça é pública, mas a grama tá alta, o banco é desconfortável, não tem sombra e a noite não tem luz, não se escuta grilo, sapo ou cigarra. O comércio acontece e a interação pessoas entre si e com ambiente passa para segundo plano.
A piscina é limpa, estável, segura, clorada, estéril. A água pública é perigosa, tem correnteza e poluição, tem bicho. A potável tá escassa vem de rio poluído. A água que foi murada e engarrafada é pura e saudável.
Muros de diversos tamanhos e cores devem ser respeitados em sua nobre e única função de segredar, conter os de dentro separados dos bárbaros, selvagens de fora. Muros não servem para propagar filosofias, ou demarcar espaços de gangues desmuradas, não servem para expor arte gratuita e nem protestos sérios. Quem desrespeita o muro ganha uma estadia entre grades para entender melhor o papel das paredes.


Bem vinda à (capital latina do capital) São Paulo, obrigada.
A lógica vigente parece ser "quanto menos natural e público melhor". A segregação descriminadora é parte do cotidiano.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Saber morrer


Li certa vez que o propósito da vida, para os budistas, pode ser resumido em aprender a morrer. Isso estava inserido num texto longo, com letras destacadas. A ideia me chocou, não tive tempo de ler o texto todo. Fiquei matutando sobre essa frase. Justificar a vida pela morte, como isso é possível? A vida é muito mais que a morte, a morte é um aspecto negativo, é o fim, é o horror. Para todos os lados que olho só vejo vida, não há espaço para morte que é ignorada sistematicamente. Conclui então, que esse era um conceito muito simplista da vida, além de macabro, pessimista e desencorajador. Minha fascinação pelo budismo diminuiu e segui exaltando a vida e ignorando a morte.

Mas ignorar não altera o fato de ela existir. E no fim desse ano ela fez questão de me lembrar disso. Primeiro um cachorro, grande e amarelo que, velho, arfava na cozinha. Depois uma avó, muito vaidosa e rica, colecionava fotos das mais diversas viagens sempre com belas roupas caras e volumosos cabelos loiros. Foi ficando esquecida, sentada num sofá olhando para televisão, repetia uma palavra ou outra, sem saber onde e com quem estava. Por vezes chorava dizendo ter apanhado de sua mãezinha. Da última vez que "conversei" com ela, me repetia "tem que ser firme. é firme. firme".
Às vezes me punha a me perguntar se era bom ou ruim não ter consciência da aproximação do momento final, da hora da estrela. Mas o fato é que penso que ela na verdade sabia o que se passava, mas não podia expressar. E então, se aproximando ainda mais, a internação do sogro, que com quase 70 havia recém tirado uma metástase do cérebro. Agora ele recebeu alta e encontra-se estável. O hospital onde fui visita-lo por toda a última semana é exclusivo para sêniores, muitas pessoas vivem seus últimos dias lá. Sem objetos pessoais, conhecidos, com história. Um quarto estéril, neutro com luz fria e cheiro de doença. Com agulhas enfincadas na pele, recebendo comida pelo nariz e ar artificial. Sendo assistido por desconhecidos que rotineiramente tocam para monitoramentos que machucam. Sem poder de decisão sobre seu próprio corpo e destino. Até onde devemos afastar a morte? 

Já nesse início de 2015, outra avó se foi. Me tornei próxima dela ao procura-la para ouvir sua história. Ela também estava enfrentando um câncer que lhe tirava as energias. Tanto que esse ano ela não pode se banhar no bravio mar, mas até 2013 se banhava todo o verão. A lucidez dela, beirando os 90, me espantava. O brilho no olhar quando sobre política, luta contra as injustiças. Mesmo dos seus anos presa, por causa da ditadura, conseguia exprimir as experiências sem drama, com serenidade e dignidade. Presa por atentado contra União ela era educadora de uma escola pequena que vinha apresentando resultados positivos. Os quais até hoje ela não vê igual. Ainda! Na educação o golpe foi duro. Em dezembro conversávamos por horas, enquanto me ensinava a fazer ambrosia, caminhávamos ou enquanto ela se encostava com o corpo cansado o peito chiando mas a alma serelepe saindo pela boca, se exibindo no brilho dos olhos. Em janeiro, houve uma piora no seu quadro físico e dentro de 5 dias já não usava mais o velho corpo.

Ao acompanhar todas essas experiências minha perspectiva muda. Tenho medo da morte, muito medo, mas tenho ainda mais medo de como isso pode ocorrer. O desconforto físico de perder a capacidade de caminhar, excretar, se comunicar. Agulhas furando a fina camada de pele para estourar veias ainda mais finas e sensíveis. Somando isso ao desconforto imaterial, rancores, mágoas, remorso e arrependimento. Essa transição pode se tornar uma árdua e torturante expiação, que estamos acostumados a observar em nossa cultura ocidental. Mas será que pode ser um processo natural, tranquilo e quem sabe até bonito?

Passei a me questionar como construir alguma estrutura para que essa experiência ocorra de forma positiva. Percebi então, que mesmo sem me dar conta, a morte já vem guiando meus passos. E tudo o que considero de grande valor, e pelo que me dedico, é justamente o que pode me proporcionar uma morte suave e tranquila.

Conhecer
O desconhecido é sempre temido. O que é a morte? O que é matéria? O que temos/somos de imaterial? Essa parte imaterial morre? Essas e outras tantas questões me levam a leituras diversas. E não encontro na ciência essas investigações, corro então pra religião e misticismo. Embora, devo reconhecer, encontro muito mais sobre a vida do que sobre a morte em todas as leituras, ainda assim, estão sendo de grande valia.
Com esse conhecimento consigo ver a transição de pessoas queridas com uma certa tranquilidade, e em alguns momentos posso até pensar na minha sem o pânico aterrador.

No corpo físico
É bem verdade que hábitos saudáveis aumentam nossa qualidade de vida. O que por si só já basta, mas alguns malefícios vem a longo prazo. O açúcar, a gordura, parecem inocentes saborosos. Horas e mais horas de cadeira no ar condicionado - lendo, estudando, trabalhando, assistindo, brincando - passam rápido. Mas é nos 80 que as articulações travam, o rim reclama, o hospital vira favorito no gps, e a coisa só piora...

Relações humanas
Aqui tem duas partes que se mesclam, mas separei. Uma mais individualista, que tem dois pontos, e outra holística, que pus abaixo.
Primeiro ponto, não é uma fada madrinha que vai por pessoas na sua volta. Cheias de amor, admiração e carinho. Esses sentimentos devem ser conquistados, nutridos, fortificados.
Um outro ponto é não ter rancores, arrependimentos e frustrações. Acho que devemos analisar esses sentimentos, identificar sua causa e transmutar as experiências negativas! Conseguir aceita-las como parte de nossa história e extrair as lições positivas.

Sentir dignidade na vida
Possivelmente, no processo da morte faremos um retrospecto do passado. E, analisando o mundo agora, com toda minha sanidade e capacidade moral e intelectual, me parece que "trabalhei e eduquei meus filhos" não é suficiente. As relações pessoais são importantes, como apontado acima, só que somos indivíduos dentro de uma sociedade. Não exercemos influência apenas dentro de nossa família e círculo social, exercemos influência na sociedade e ambiente ao compramos algo que satisfaz um desejo pessoal, mas explora e oprime outras pessoas e extirpa os bens (recursos) naturais. A ânsia por ter (coisas e experiências pessoais) ignorando seus efeitos impactos, mesmo com acesso a informação, pode agravar uma crise de consciência tardia.

Acho, então, que minha primeira analise do conhecimento budista é que foi supérflua. Aprender a morrer é muito desafiador e possivelmente menos individualista do que parece numa primeira analise.

Espero que todos possamos chegar a esse momento saudáveis, satisfeitos e felizes.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A vida e as coisas.

Quanto menos assisto televisão menos capaz de assisti-la me torno. E isso seria um motivo de orgulho se conseguisse transpor os momentos sociais em que todos olham para TV. Não consigo. Então fico no meio das pessoas tentando me passar por torta frita. O bom do locus social que me encontro é que o sofá é confortável, a sala tem ar condicionado, a refeição é farta, o ruim é que parece que nada do que penso e sinto faz sentido. Muito embora cada vez me torno mais convicta da  minha coerência.

Por alguma razão a rede globo resolveu pregar acerca da depredação dos ônibus. Seria tudo bem se a matéria do fantástico não começasse com dois adolescentes assassinados por policiais durante um baile funk (possivelmente único momento de lazer de jovens da periferia). E então o repórter me diz em tom de horror "jovens queimaram um ônibus, porque acreditam que policiais tenham matado dois traficantes". Bem, que tenham sido assassinados por policiais, isso é uma suspeita, mas que eram traficantes não resta dúvida. O julgamento já foi feito, várias vezes embora nenhum juiz tenha participado. Foram julgados e condenados a pena de morte executada de imediato sem advogado de defesa, pelos policiais. E novamente julgados pelo repórter.

Mas, ao que parece esse não é o problema! O problema, e o drama todo reside no ônibus queimado. Sim, caros amigos, o ônibus. Essa é a vítima principal da ocorrência, o foco de nossa atenção e compaixão, o motivo de nossa revolta, nós membros da classe média.

Ainda estou um tanto incomodada com essa reportagem, e olha que faz semanas. Imaginem que entrevistaram uma funcionária da empresa de ônibus. E ela disse o valor do ônibus. Pois, uma informação séria tem que ter números. E eu não me lembro o valor porque estava pensando "Por que o senhor atirou em mim?". Imagens de horror de um ônibus vazio vagando pela noite eram exibidas, enquanto o motorista narrava o medo que sente de ser abordado. Outra voz disse que estava num ônibus que foi queimado "Eles mandaram a gente sair - desce, desce". Outro número foi exibido, que também não tenho certeza, mas acredito que era algo como: desde o início do ano 45 ônibus foram queimados. Nessa hora meu estomago embrulhou e calculei que seriam 90 assassinados nas periferias da cidade, 3 salas de aula inteiras. Se extrapolarmos o caso narrado para os demais.

Desses jovens nenhum tem nome. Nenhum tem mãe sendo entrevistada. Nenhum tem voz. Possivelmente não saberíamos de suas mortes, não haveria notícia se não fosse pelo pobre e querido ônibus queimado. A preocupação é com o patrimônio. O ônibus de 3 reais a passagem. A coisa que atropela a vida até no lúdico, na narrativa.

A colega do meu lado, confortavelmente deitada em seu sofá, fica assustada. "nossa, que absurdo, depois reclamam do preço da passagem". Meu coração bate forte, como falar sem gritar sacudindo-a pelos braços? "dois adolescentes foram assassinados" e vem a resposta 'eram traficantes' como se isso justificasse. Como se fosse legítimo assassinar todo e qualquer suspeito de tráfico que more na periferia. O coração continua batendo forte, meu inconformismo dificulta meu raciocínio, sinto o namorado me cutucar, de novo, cada vez mais forte. Devo me calar? Não posso, parece que seria trair a mim mesma, parece o mínimo que posso fazer por toda injustiça é me posicionar numa conversa informal. Na dúvida me permito um último e fugaz argumento, digo então rapidamente: "esse não é o papel da polícia". E então volto a posição torta frita, ignorando todo o resto, olhos parados fingindo ver tv, por dentro um turbilhão.

Estou condicionada, depois de 28 anos adestrada, a colocar o individual acima do coletivo. - Eu não mereço ser estuprada! E as outras? - Me incomoda sobremaneira o cutucão, esqueço dos jovens na periferia. Nas conversas individuais com o namorado sempre concordamos com o absurdo da injusta luta de classe, mas num momento como esse ele me cutuca, me oprime, me abandona, controla o que posso ou não dizer? Não confia que eu consigo conversar sem destruir vínculos familiares? Eu consigo? E de modo covarde, que dissesse "bem tenho uma opinião sobre isso, mas o mais adequado seria cada um guardar sua opinião para si", ai então também seria julgado.

Característico de mim mesma rumino, rumino, e rumino sobre isso. Controle. Não quero que ele me controle, mas isso não seria controla-lo? Proibi-lo de me cutucar: uma advertência agora, dá próxima é suspensão. Não. Só posso controlar a mim mesma, o que sinto e faço com o que me afeta. Não existe a menor possibilidade de controlar ao próximo, não quero isso, sou incapaz disso. Gostaria de não receber um discreto 'fica quieta' de quem gostaria de receber explicito apoio. Mas, a verdade é que acima de tudo não quero que ninguém me obedeça, que seja menos livre só para me satisfazer. Só cabe a mim decidir o que fazer com as próximas cutucadas. E decido que irei ignorar, não é bem um 'foda-se' é mais como um 'puxa, seja lá o que eu quiser dizer preciso moderar o tom para que ninguém se ofenda', e então seguir dizendo. Afinal, foi uma luta muito grande para que as mulheres tivessem voz, e me calar seria uma verdadeira traição.