Me posicionava absolutamente contra o PT, dizendo o que todos dizem, que são corruptos, direita enrustida, e por aí a fora. É que idealizo uma sociedade anarquista, sem Estado, principalmente sem apropriação dos recursos e meios de produção, com núcleos de autogestão. Amo essa ideologia, e sim acredito ser possível e viável, pois baseada no único ser humano que conheço internamente considero a natureza humana boa =)
Muito bem. Acontece que por acaso estou tendo que ler mais do que filósofos, e teóricos. Estou estudando de cabo a rabo a Assistência Social brasileira. Tive que me despedir da minha ignorância e reconhecer que assistência social não é esmola, não é compra de votos, não é sustento de vagabundo. É, ou intenta ser, um conjunto de ações com o objetivo de garantir os direitos constitutivos de todo cidadão. Temo que se a direita for coerente e fiel a sua ideologia as questões sociais terão peso ínfimo no governo tucano. Fornecer segurança social depende de uma gama enorme de profissionais, de infraestrutura, pois um programa sério necessita (como está previsto na política nacional da assistência social) constante pesquisa, informação, monitoramento, capacitação de profissionais, elaboração de aplicativos para integrar e disponibilizar informação, métodos de garantia da transparência e etc. O que me faz pensar ser coerente, justa e necessária (dado o modelo atual de sociedade) um Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome.
Para toda essa política funcionar necessita-se de dinheiro, que obviamente vem dos impostos. Uma vez que todos que vivem nos limites territoriais estão sob a mesma constituição temos que ter em mente que para garantir os direitos previstos naquele textinho de 1988 precisamos de dinheiro. Pois o textinho, que nos rege a todos, não diz: terão direito a saúde, educação, dignidade os que puderem pagar, os que não podem azar, mudem-se à Cuba, e acima de tudo não se reproduzam. O discurso hegemônico que demoniza a quantidade de imposto deve ser visto com cautela, muita cautela.
Mas o ponto que eu realmente queria chegar, o que me fez vir até "aqui" é o seguinte. A principal crítica que eu tenho ao PT, e que fazia com que me mantivesse fiel a minha ideologia anarquista e mandasse as eleições ao carajo é que nesses 12 anos de governo o PT foi muito suave e benevolente com o "grande capital", foi companheiro do "poder hegemônico".
Não sei se comentei em outro post. Com o auxilio de uma socióloga maravilhosa identifiquei que a situação que levou à Revolução Francesa e outras, não poderia ser fome e miséria, como em algum ponto da minha catequização direitosa fui levada a crer. Pois justamente que quem está a morrer de fome pouco quer e nada pode discutir de política. É necessário um mínimo de segurança e estabilidade para se pensar além de suas necessidades pessoais básicas. Será que o levante de julho não é em grande parte devido aos programas sociais (por favor, antes de criticar um programa ou projeto social leia ele, e veja em sua cidade um efeito real dele)? Não houve um avanço nas questões LGBT, feminismo, e racismo? A mim parece claro que sim, vejo negros na universidade, um espaço historicamente branco, vejo casais homoafetivos legitimando sua relação, vejo a criminalização da violência doméstica.
Contudo, tenho total consciência, e gostaria muito que nesse momento você estivesse me xingando com o seguinte argumento: é justo precisarmos de programas sociais, de leis para defender os que não tem poder politico-economico? Com o desenho atual da sociedade, esses programas e leis são um remédio que aplacam um sintoma mas não tem poder de atacar a causa. Sim! A causa estaria ligada a desigual distribuição de recursos, a detenção do meio de produção, que gera uma hierarquia primária.
Governos anteriores, recentes, quiseram ir por si diretamente na causa. Jango já tinha estruturada e aprovada diversas reformas estruturais, ele tinha enorme apoio do povo, o poder hegemônico se fez mais ostensivo para apagar qualquer possível ameaça, e recebemos o golpe militar que fez o favor de estripar a qualidade do ensino público (e assim, eu particularmente não sou reformista e defendo uma sociedade sem escola, como disse é o meu mais alto ideal anárquico, mas dada a atual situação defendo que se é pra ser uma vida com base no dinheiro advindo da educação formal que tenham todos acesso ao ensino de qualidade), e enfim, fez aquelas grandes maravilhas que nós sabemos.
Um outro exemplo, próximo temporal e espacialmente foi o de Salvador Allende no Chile, que foi ainda mais longe, ele, caros amigos, chegou a nacionalizar as minas de cobre, reativar e nacionalizar industrias paradas, nacionaliza bancos. Em seus 3 anos de governo o Estado chega a controlar 60% da economia, se isso poderia ser bom ou ruim não dá pra saber pois, apesar de agir em absoluta conformidade com as leis do país, e ter o apoio de grande parte da população mesmo com os cruéis e desumanos boicotes e sabotagens, não apenas dos EUA como da elite chilena (que não tava assim feliz de perder seus privilégios de lucrar sozinha com minas de cobre e propriedade de terras). A brincadeira termina com armamentos pesados, banho de sangue, e volta a "ordem" em conformidade com o poder hegemônico.
O que eu quero dizer é que, enquanto libertária eu não quero votar. Mas que não tenho a menor ideia de como superar o modelo social vigente, baseado na escassez e exploração, que alimenta as piores injustiças e esta detonando com o planeta (e a possibilidade de vida fora do capital, ninguém vive sem água, e só tem na prateleira do mercado). E que, sendo de extrema esquerda, antes o rosa do que o violeta, me agarro na esperança de que em verdade o PT saiba que a qualquer ameaça mais visível corremos o risco de a opressão se tornar mais ostensiva. E então, agindo dentro dos limites, trata de dar suporte para que o povo promova a revolução suave e pacífica rumo a sociedade verdadeiramente justa, que pretendia Allende de dentro do Estado.
o questionamento e a reflexão nos tornam mais conscientes, plenas, felizes, questionadoras e reflexivas!
terça-feira, 21 de outubro de 2014
quarta-feira, 1 de outubro de 2014
Cansado do PT? Porque?
Tenho o privilégio de fazer parte desse microuniverso chamado classe média branca. É um enorme e infeliz privilégio por várias razões: a mídia não me estereotipa de bandida, subalterna, horrorosa e ignorante. Não tenho medo de ter a casa invadida, o pai sequestrado pelo Estado. Me sinto pertencente a locais públicos, como universidade, shoppings etc.
Por outro lado, viver nesse universo me deixa cara a cara com opiniões e posições um tanto desconfortáveis. Agora em época de eleição a ignorância política/social de nossa classe fervilha. Eu me incluo nessa ignorância toda, pois seja por desinteresse, seja por incapacidade cognitiva não sei nada de política partidária. O que para mim tá tudo certo, uma vez que me assumi como anarquista e no fatídico domingo de eleições pretendo ir a praia, nem votar, nem anular, nem justificar. Me sinto a vontade com essa decisão porque não acredito no sistema eleitoral, sinceramente, você pesquisou todos os candidatos e propostas? De todos os cargos? E sabe qual é a função de cada um desses cargos, e acompanhará o desempenho de cada candidato eleito? E sente-se representada por tal criatura? Acho que pode ser que sim! Ótimo, mas o que tenho escutado me deixa confusa e chateada.
O maior argumento da classe média que vem falar de política comigo é que não vai votar na Dilma porque ninguém aguenta mais o PT! Cuma? Simples assim, saiu de moda, ficou cafona. A cada estação muda-se a estampa na vitrine do shopping, a cada eleição deve-se renovar o presidente! Tá mas você viu que bem ou mal houve enorme progresso na qualidade de vida da população carente, Planos e Políticas para adolescentes em risco social e pessoal, aprimoramento na Lei de Assistência Social, e essas coisas?
Acho que no auge do choramingo "classe média sofre" talvez seja justamente por isso que PT "saiu de moda". E aí vem a proposta da nova política.
E eu fico realmente confusa. Que inovação toda essa gente quer?! Aqui eu meio que me identifico, porque também quero revolução. "Eu, candidato pretendo romper com valores capitalistas, e acabar com toda e qualquer hierarquia. Ao longo do meu governo buscarei empoderar as pessoas de modo que a massa se desfaça em seres apropriados de si, que pensam de modo crítico. E juntos diminuiremos os poderes de bancos, empreiteiras, montadoras e demais multinacionais monopolizadoras." Mas, sinceramente, acho bem difícil que seja essa a inovação buscada por quem está "cansado do PT".
Acho que no auge de sua ignorância sociológica, de direitos humanos, despidos dos valores de Igualdade, Liberdade e Fraternidade, no topo de seu interesse mesquinho pela busca incessante de mais conforto, poder de compra e satisfação de prazeres sociais, de ampliar sua rede de servos, eles querem uma mudança chamada austeridade e retrocesso. Deus abençoe suas incapacidades de articulação, amém.
Por outro lado, viver nesse universo me deixa cara a cara com opiniões e posições um tanto desconfortáveis. Agora em época de eleição a ignorância política/social de nossa classe fervilha. Eu me incluo nessa ignorância toda, pois seja por desinteresse, seja por incapacidade cognitiva não sei nada de política partidária. O que para mim tá tudo certo, uma vez que me assumi como anarquista e no fatídico domingo de eleições pretendo ir a praia, nem votar, nem anular, nem justificar. Me sinto a vontade com essa decisão porque não acredito no sistema eleitoral, sinceramente, você pesquisou todos os candidatos e propostas? De todos os cargos? E sabe qual é a função de cada um desses cargos, e acompanhará o desempenho de cada candidato eleito? E sente-se representada por tal criatura? Acho que pode ser que sim! Ótimo, mas o que tenho escutado me deixa confusa e chateada.
O maior argumento da classe média que vem falar de política comigo é que não vai votar na Dilma porque ninguém aguenta mais o PT! Cuma? Simples assim, saiu de moda, ficou cafona. A cada estação muda-se a estampa na vitrine do shopping, a cada eleição deve-se renovar o presidente! Tá mas você viu que bem ou mal houve enorme progresso na qualidade de vida da população carente, Planos e Políticas para adolescentes em risco social e pessoal, aprimoramento na Lei de Assistência Social, e essas coisas?
Acho que no auge do choramingo "classe média sofre" talvez seja justamente por isso que PT "saiu de moda". E aí vem a proposta da nova política.
E eu fico realmente confusa. Que inovação toda essa gente quer?! Aqui eu meio que me identifico, porque também quero revolução. "Eu, candidato pretendo romper com valores capitalistas, e acabar com toda e qualquer hierarquia. Ao longo do meu governo buscarei empoderar as pessoas de modo que a massa se desfaça em seres apropriados de si, que pensam de modo crítico. E juntos diminuiremos os poderes de bancos, empreiteiras, montadoras e demais multinacionais monopolizadoras." Mas, sinceramente, acho bem difícil que seja essa a inovação buscada por quem está "cansado do PT".
Acho que no auge de sua ignorância sociológica, de direitos humanos, despidos dos valores de Igualdade, Liberdade e Fraternidade, no topo de seu interesse mesquinho pela busca incessante de mais conforto, poder de compra e satisfação de prazeres sociais, de ampliar sua rede de servos, eles querem uma mudança chamada austeridade e retrocesso. Deus abençoe suas incapacidades de articulação, amém.
sexta-feira, 12 de setembro de 2014
Os biscoitos
Me lembro quando minha
concepção de mundo começou a mudar radicalmente. Era fim de outubro, me lembro
porque usava meu iPad novo, que tinha ganho no dia das crianças. Eu estava
deitada na cama, minha mãe bateu e entrou. Continuei concentrada na minha TL.
Ela sentou-se na cadeira, possivelmente olhando para mim, aquela sensação
incomoda de ter alguém te olhando.
- O que você quer, mãe?
- perguntei sem tirar os olhos do iPad.
- Bem, é meu domingo de
folga, o dia está bom, acho que a gente pode dar uma volta pela orla.
Exercendo meu papel de
adolescente, demonstrei meu desagrado com a ideia bufando alto.
- Vai, vamos lá, quero
conversar com você. E deixa esse troço ai.
Me calcei e saímos. O
sol brilhava e o vento soprava moderadamente de nordeste. Caminhamos um pouco
pela Henrique Pancada e nos sentamos em um banco voltado para lagoa.
- Você sabe que sua avó
se matou, né?
- Aham... Eu fui no
enterro – falei com tom de “é óbvio que sim”.
- Pois é. – pausa – no dia
do velório seu avô me falou que eles sempre tiveram uma vida tão dura – ela foi
dar um sorriso, mas acabou saindo um soluço e lágrimas começaram a se formar em
seus olhos. Eu começava a me sentir muito desconfortável, e preferia estar
trancada no meu quarto, com a simplicidade de meu iPad, sem lágrimas nem
sentimentos alheios.
Sem saber o que fazer
nem o que dizer, fiquei esperando que ela continuasse.
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Link da imagem |
- Eu nunca soube! Quer
dizer, eu sabia que não podíamos comprar muitas coisas e que eu era a única
aluna da turma que não tinha sapato, mas eu nunca desconfiei que a nossa vida
era dura. Minha mãe assava biscoitos com sorrisos, ela inventava mil e uma brincadeiras comigo,
nós dançávamos, eu pescava com meu pai, todo fim de aula no verão pulava na
lagoa com os amigos. Eu me sentia tão feliz, amada, completa. Nunca desconfiei.
Sabe, Rita, quando me mudei para Porto não foi fácil. Trabalhar e fazer a
faculdade, ter que escolher entre o almoço ou o aluguel. Realmente não é uma
vida feliz, como aquela que minha mãe se esforçava para me dar apesar de suas
preocupações internas tão cruéis. Meu pai disse que eles constantemente eram
ameaçados de despejo. Que se não fossem as galinhas, a doação do leite da nossa
vizinha Nini não teríamos o que comer. Os pescados de meu pai mal davam
para manter a casa – ela ergueu seu olhar, mirando o horizonte – Eu só queria
ter dito a ela que minha infância foi deliciosamente feliz.
- Mãe, isso não teria
mudado as coisas. Não foi culpa sua!
- Rita, tenho te
fornecido tudo para facilitar sua vida. Quero que seu ingresso na vida adulta
seja sem nenhuma privação. Mas, desdaquele dia, que seu vô me falou aquilo, eu
fiquei pensando, será que eu tenho te passado a felicidade, a despreocupação e
o amor que eu vivenciei na minha infância? Eu nem te conheço. Fui tão ausente
na tua infância, sem biscoitos contentes... – conseguimos rir da entonação de importância
que ela deu aos biscoitos. Foi um riso triste, mas cheio de cumplicidade. Um
riso meio desesperado que se transformou num choro soluçante. Juntas,
abraçadas, choramos nossa tristeza, nossa desgraça, nossos pesares e a saudade
de nós mesmas.
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Não falamos muito
depois desse momento. Nos acalmamos aos poucos, assistimos ao por do sol. E voltamos
caminhando. Tentamos fingir que nada havia acontecido, eu seguia interpretando
meu papel de adolescente entediada. Mas, todo domingo de folga dela assávamos biscoitos
em dia frio, íamos ao Cassino em dias quentes, ou caminhávamos juntas,
visitávamos meu avô.
quinta-feira, 11 de setembro de 2014
O direito de matar
Eis que me deparo com esse inquietante post:
Pensei, curti, descurti, naveguei um pouco, voltei e curti, aí eu descurti, aí eu passei um tempão pensando nisso, no que eu tinha sentido, o que eu realmente pensava.
Sou vegetariana, simpática ao veganismo. Mas, evito o máximo possível doutrinar os outros. As vezes não resisto de me expressar, esses dias a irmã de uma amiga disse (sem muita convicção) que tinha parado de comer carne, não resisti em expressar meu apoio "isso ai, bate aqui". De todo modo, essa é uma conversa que eu evito iniciar e me policio em participar. Pq é chato ter alguém palpitando em algo tão individual, como o que se come. É como o sermão do cigarro. A plantação de tabaco é uma monocultura, expulsa o camponês, altamente tóxica, usa e abusa de subemprego, adiciona-se um monte de veneno e causa um monte de doença, fede, a bituca fica pela rua etc. Mas, parar de fumar é uma decisão que só cabe ao fumante. Ainda que a monocultura de fumo afete a todas as espécies. Então, mesmo que se tenha o direito de fumar, existe a necessidade do debate sobre isso.
O que me incomodou no post, que não consegui curtir foi a comparação escravos/judeus/mulheres/animais. Faz pouco tempo que resolvi parar de comparar a humanidade a animais, sério eu tinha esse hábito de sempre que tinha alguma dúvida pegar um exemplo animal. Cuidado parental, por exemplo. Porque romanticamente eles parecem estar mais "conectados a sábia mãe natureza". E então, animais vivem livres, as aves são admiravelmente anarquistas, ai como os admiro. Só que de algum modo existe uma diferença crucial entre os animais em geral e animais humanos. A consciência de si (tenha sido isso uma evolução ou um erro), o uso da escrita, a busca eterna por conforto, sei lá, algo nos distingue. E mesmo que possamos aprender muito com os mais diversos e admiráveis animais, ainda é ofensivo chamar um ser humano de macaco. Comparar os grupos humanos historicamente inferiorizados com animais foi uma estratégia um tanto infeliz.
Outra ideia implícita que me impediu de curtir foi uma sugestão de linearidade e evolução da luta. Do tipo: conseguimos a libertação dos escravos, salvamos os judeus, e as mulheres tem uma delegacia especifica, agora no nosso mundo cor de rosa podemos nos ater as vaquinhas. Bem, dizer que superamos a escravidão é muito ingênuo, ainda existem relações de trabalho claramente escravagistas e outras não tão claras pelo simples fato de não haver uma prisão física, mas muita gente, em sua maioria negros, trabalham de manhã para comer a noite. Ainda existe perseguição religiosa e mulheres sofrem muita violência, não só física.
Agora, porque depois de descurtir eu tornava a curtir? Para mim é inegável que alguém se apegar ao seu hábito de comer carne a ponto de usar um argumento desse para não se questionar, soa como nos demais exemplos. Sou dono da fazenda e escravos são ótimos para mim, não quero me questionar, não quero mudar, só quero progredir e ser bem sucedido. Gosto de churrasco, e pensar no modo de produção, no impacto socioambiental e no sofrimento animal não me gera vantagens nem lucro, não quero mudar, fim de papo. Eu to bem assim e o resto que se lasque. Não tem uma semelhançazinha fascista pró satus quo, individualista e prepotente?
Pensei, curti, descurti, naveguei um pouco, voltei e curti, aí eu descurti, aí eu passei um tempão pensando nisso, no que eu tinha sentido, o que eu realmente pensava.
Sou vegetariana, simpática ao veganismo. Mas, evito o máximo possível doutrinar os outros. As vezes não resisto de me expressar, esses dias a irmã de uma amiga disse (sem muita convicção) que tinha parado de comer carne, não resisti em expressar meu apoio "isso ai, bate aqui". De todo modo, essa é uma conversa que eu evito iniciar e me policio em participar. Pq é chato ter alguém palpitando em algo tão individual, como o que se come. É como o sermão do cigarro. A plantação de tabaco é uma monocultura, expulsa o camponês, altamente tóxica, usa e abusa de subemprego, adiciona-se um monte de veneno e causa um monte de doença, fede, a bituca fica pela rua etc. Mas, parar de fumar é uma decisão que só cabe ao fumante. Ainda que a monocultura de fumo afete a todas as espécies. Então, mesmo que se tenha o direito de fumar, existe a necessidade do debate sobre isso.
O que me incomodou no post, que não consegui curtir foi a comparação escravos/judeus/mulheres/animais. Faz pouco tempo que resolvi parar de comparar a humanidade a animais, sério eu tinha esse hábito de sempre que tinha alguma dúvida pegar um exemplo animal. Cuidado parental, por exemplo. Porque romanticamente eles parecem estar mais "conectados a sábia mãe natureza". E então, animais vivem livres, as aves são admiravelmente anarquistas, ai como os admiro. Só que de algum modo existe uma diferença crucial entre os animais em geral e animais humanos. A consciência de si (tenha sido isso uma evolução ou um erro), o uso da escrita, a busca eterna por conforto, sei lá, algo nos distingue. E mesmo que possamos aprender muito com os mais diversos e admiráveis animais, ainda é ofensivo chamar um ser humano de macaco. Comparar os grupos humanos historicamente inferiorizados com animais foi uma estratégia um tanto infeliz.
Outra ideia implícita que me impediu de curtir foi uma sugestão de linearidade e evolução da luta. Do tipo: conseguimos a libertação dos escravos, salvamos os judeus, e as mulheres tem uma delegacia especifica, agora no nosso mundo cor de rosa podemos nos ater as vaquinhas. Bem, dizer que superamos a escravidão é muito ingênuo, ainda existem relações de trabalho claramente escravagistas e outras não tão claras pelo simples fato de não haver uma prisão física, mas muita gente, em sua maioria negros, trabalham de manhã para comer a noite. Ainda existe perseguição religiosa e mulheres sofrem muita violência, não só física.
Agora, porque depois de descurtir eu tornava a curtir? Para mim é inegável que alguém se apegar ao seu hábito de comer carne a ponto de usar um argumento desse para não se questionar, soa como nos demais exemplos. Sou dono da fazenda e escravos são ótimos para mim, não quero me questionar, não quero mudar, só quero progredir e ser bem sucedido. Gosto de churrasco, e pensar no modo de produção, no impacto socioambiental e no sofrimento animal não me gera vantagens nem lucro, não quero mudar, fim de papo. Eu to bem assim e o resto que se lasque. Não tem uma semelhançazinha fascista pró satus quo, individualista e prepotente?
sábado, 30 de agosto de 2014
Cachoeira Proibida
Todo dezembro a família se reunia
na casa da vó, interior de Minas. Com minha prima a relação era mais próxima.
Mal nos víamos e eu já me colava a ela. Ficávamos pelo quintal ou pela rua, só
entrávamos em casa para comer e dormir. E tomar banho quando alguém se dava
conta de nos forçar.
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Fonte: clica aqui. |
Minha prima tinha o corpo
pequeno, no entanto a coragem e a audácia eram grandes. Falava o que pensava,
tanto fosse pra uma criança ou adulto. Naquele dia saímos cedo. “Vamos ver onde
é a cachoeira que você encontrou na internet.” Ela me disse decidida enquanto
calçava um sapato fechado no lugar dos habituais chinelos de dedo. Fiz o mesmo.
Rabiscamos um mapa com base no
google earth e fomos seguindo. Caminhamos muito, o sol estava forte e a sede
começava a incomodar. Eu oscilava entre a vontade de tomar banho de cachoeira e
o receio de nos perdermos. Imagens do meu esqueleto esturricando no sol
povoavam minha cabeça. Mas minha prima estava convicta demais com o sucesso de
nossa jornada, eu preferi deixa-la assim feliz e não compartilhei as
possibilidades macabras que vez por outra invadiam minha tela mental.
Até que nos deparamos com uma
cerca de pau e três linhas de arame farpado.
- A gente já deve tá perto – ela
disse enquanto se esquivava pelos arames. Minhas pernas congelaram. Aquilo
era invasão de propriedade. - Vamos! Mal posso esperar pra me
refrescar.
- Eu num sei não, Pri. E se o
dono não gostar?
- Que? Que dono? Ah, o da cerca!
Ele não vai se incomodar, nem aqui deve estar.
- Eu não vou pular uma cerca,
invadir uma propriedade. E se tem cachorro? Capanga com arma, se chama a
polícia? Se eu for presa minha mãe morre de desgosto, ela odeia preso. Acho que
me mata!
- Ara, vai... – ela se virou e
seguiu farejando o caminho provável.
Fiquei um tempo parada, olhando-a
se afastar com passos decididos como se dona da terra. O brilho do Sol se
refletia nos seus cachos negros, por um momento quis ser como ela. Segurei no
arame, ergui a perna. Eu não era como ela. Eu era eu, e precisaria começar a
respeitar e aceitar essa diferença. Abaixei a perna de volta no lugar, soltei o
arame e voltei cabisbaixa para casa. A volta foi triste, a sede perdeu espaço
para o desanimo. Fiquei no quintal sozinha vendo as galinhas ciscarem durante toda
tarde. Uma hora tive impressão de ouvir a voz de minha prima na oficina do vô,
mas quando cheguei ele estava só.
- E você? Num qué nada?
Murmurei algo semelhante a um
“não” e saí.
Na manhã seguinte a primeira
coisa que vi foram os grandes olhos negros de minha prima. E ouvi sua voz,
demasiado grave para sua idade e gênero, me preguntando excitada:
- Preparada para um maravilhoso
banho de cachoeira? Então, se arruma que eu dei um jeito.
Me joguei da cama contagiada pelo
animo dela. Calcei minhas botas e segui correndo com ela pelo mesmo caminho do dia anterior. Achei que ela poderia ter encontrado um desvio. Mas, no lugar onde deveria ter
uma cerca, havia uma cerca arrebentada. Minha prima sorria triunfante e me explicou
absolutamente orgulhosa de sua ideia maravilhosa:
- Pronto. Agora você não precisa
invadir cerca, nem propriedade nenhuma. Basta seguir sua marcha!
- Você tá louca? Isso é crime!
Depredou a coisa de outro.
- Olha, eu só quero tomar banho
numa cachoeira. O cara cerca uma parte imensa da terra pra ele, tira toda a
mata enfia umas vacas vez por outra. Se ele quer estuprar essa porção da
natureza o problema é dele, eu só quero me refrescar. Quem é o louco criminoso?
Vou indo que esse calor tá me matando. Se você qué vim, vem. Senão num posso
fazer mais nada. Só digo que a cachu é perfeita!
Com meus conservadores 12 anos de idade
eu não tinha capacidade de tecer críticas à propriedade privada, à concentração de
rendas, exploração e apropriação de terras e recursos naturais. Eu tinha sido
doutrinada a respeitar a propriedade acima de tudo e que quem desrespeitasse
isso minimamente era ladrão, vagabundo que não valia nada, sem moral nem ética.
Mas, o que eu conseguia compreender perfeitamente naquele momento era que não
podia haver nenhum crime ou ameaça no fato de duas criança tomarem banho de
cachoeira. Além do mais, o dia anterior (como criança que respeitou o limite da
cerca) tinha sido terrivelmente chato. Enquanto me decidia podia ver minha
prima caminhando lentamente pelo pasto. Foi então que pensei no que ela havia
feito por mim. Ela rompeu uma cerca em respeito a minha limitação. Ela tinha
abusado dos valores morais dela para que eu não entrasse em crise com minha
consciência sozinha. De alguma forma ela se igualara a mim. Se eu teria que
lidar com o fato de cruzar um cerca, ela teria que conviver com a lembrança do
alicate em suas mãos rompendo a cerca. Não poderia deixa-la sozinha, isso havia
sido um pacto de cumplicidade. Não há crime maior do que se apropriar do bem
comum.
- Me espera! Eu também vou.
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